domingo, junho 25, 2006

Resistindo ao fogo da censura

História Universal da Destruição dos Livros revê mais de 55 séculos de destruição

Lilia Moritz Schwarcz

No ano de 1933, o jovem Joseph Goebels foi designado por Hitler para atuar no novo órgão do Estado: o Ministério do Reich para a Educação do Povo e Propaganda. Por meio desta instituição, Goebels garantiria não só o controle absoluto sobre a educação, como teria oportunidade de promover mudanças nas escolas e universidades. Imbuído pelos ideais do Reich que implicavam, entre outros, resgatar a auto-estima do povo alemão, em 8 de abril o general enviou um memorando às organizações estudantis nazistas, propondo a destruição dos livros considerados perigosos.E em Leipzig, Berlim, Bonn, Breslau, Frankfurt, Hannover, Munique ... os livros queimaram. Foram destruídos mais de 5.500 livros, de autores como Thomas Mann, Albert Einstein, Sigmund Freud, Karl Marx, Arthur Schnitzler, Stefan Zweig, só para ficarmos com poucos nomes de uma grande lista de "indesejáveis". Freud, já longe da Alemanha, ironizaria a situação, dizendo que "na Idade Média eles teriam me queimado, agora se contentam em queimar meus livros". Começava então um episódio conhecido como o "Bibliocausto", que antecederia em alguns anos o Holocausto e a aniquilação sistemática de milhões de judeus, durante a Segunda Guerra Mundial. Conforme teria escrito profeticamente o poeta alemão Heinrich Heine, em 1821: "Onde queimam livros, acabam queimando homens."Setenta anos depois, o mundo conheceu outra grande "queima". Em 2003, no Iraque - berço da civilização da escrita -, boa parte das bibliotecas foi saqueada ou queimada. Se no dia 12 de abril o mundo recebeu a notícia do saque ao Museu Arqueológico de Bagdá; já em 14 de abril, um milhão de livros seria incendiado na Biblioteca Nacional, além do desfalque ao Arquivo Nacional e a outras dezenas de bibliotecas universitárias, espalhadas por todo o país. Dessa vez se tratava de um "memoricídio".Fernando Báez, um especialista na história dos livros e assessor da Unesco, andou por mais de 8 anos atrás dessa história, que conta com mais de 55 séculos de destruição. A tese central é que os livros foram sistematicamente dizimados e que, sua destruição não está ligada ao objeto físico, mas se refere a seu vínculo com a memória. Segundo Báez, enquanto os terremotos, incêndios, pestes foram responsáveis por 40% dos danos; os demais 60% devem ser imputados a atos evidentemente voluntários.Por isso mesmo, o autor elabora uma longa história dessa prática, talvez o mais amplo, e por vezes programático, levantamento desse gênero. Essa viagem acompanhada por livros e referências bibliográfica começa no Mundo Antigo - Suméria, Egito, Grécia, China, Constantinopla e Roma - e revela como a prática de eliminação dos livros foi freqüente. É fato que o autor comete certos excessos e em nome de delatar tal prática coloca todos no mesmo barco: Moisés e Platão seriam destruidores de textos escritos, assim como os governantes mais totalitários. O mesmo acontece com o período moderno; nem Descartes ou Heidegger escapariam do desejo de aniquilar o livre pensar. No entanto, se essa "sanha generalizadora" pede um exercício de relativização - afinal, as conseqüências de políticas oficiais de extermínio são bem distintas das atitudes mais individuais - chega a ser comovente o mapa desenhado por Báez. O autor nos leva ao Renascimento, e ao desaparecimento de várias bibliotecas privadas; adentra o ambiente da Inquisição e do Index librorum prohibitorum, que gerou o confisco de milhares de livros em toda a Europa e depois no Novo Mundo; assim como descreve uma série de fenômenos naturais - terremotos, incêndios, furacões e inundações - sempre impiedosos com os papéis e livros. E os exemplos são muitos e eloqüentes: o incêndio de Cantuária em 1067, em Colônia em 1777, em Indiana em 1854 ou em Chicago em 1871; o terremoto de Lisboa em 1755 ... São testemunhos de como os acidentes físicos levaram ao desaparecimento de parte fundamental da memória da humanidade.Báez chega à contemporaneidade, debatendo temas do presente, como a nova modalidade dos livros eletrônicos. Mas chamam atenção não tanto as novidades, como as reiterações. Os exemplos de censura a Vargas Llosa, Jorge Amado e, nomeadamente, Salman Rushdie indicam como essa não é uma história presa ao passado, mas ganha novas versões no presente. As formas recentes de terror, os ódios étnicos e outros marcadores de diferença mais recentes criaram formas renovadas de destruição.História Universal da Destruição dos Livros (Ediouro, 512 págs., R$ 49) traz, assim, um sombrio perfil sobre nossa dificuldade de lidar com a liberdade de pensamento. Como levantamento é impressionante, no entanto, por vezes estão ausentes do livro análises mais aprofundadas, especialmente quando o autor tende a igualar exemplos que têm repercussões muito distintas. Por outro lado, Báez permite ter clareza não só sobre a destruição perpetrada, como acerca da presença dos livros nos destinos da humanidade. Afinal, na história das bibliotecas e dos livros sempre se impôs uma duplicidade: observados mais de perto parecem frágeis e passageiros; vistos, porém, de uma maneira mais distanciada surgem indestrutíveis. Assim, de um lado, a história mostra como os livros foram sistematicamente arrasados, seja por motivos naturais, seja por conta da própria razão instável dos homens. Cada vez que uma biblioteca caía, tombava com ela uma parte da civilização. Foi assim com Alexandria, que durou apenas um século, e com seus 700 mil volumes foi-se parte do conhecimento disponível sobre a Grécia. O mesmo ocorreu quando Monte Cassino foi bombardeada, durante a Segunda Guerra Mundial, e perdeu-se boa parte do conhecimento sobre a Europa medieval. E não faz muito tempo, a destruição da Biblioteca Nacional do Camboja, pelo Khmer Vermelho, levou consigo o maior estoque de informações sobre aquela civilização.O autor tem razão, portanto, ao mostrar como essa história é antiga e feita de destruições, mais ou menos intencionais. E o caso brasileiro não é diferente. Em primeiro lugar há que se perguntar porque as autoridades coloniais opunham tantos obstáculos à entrada de livros no País. E o problema seria até maior, dada a proibição expressa da existência de universidades e da impressão de livros até 1808.No entanto, assim como é certo que em todos os tempos se criaram óbices à circulação de obras consideradas perigosas, também é inegável como tais atos jamais impediram que os livros fossem lidos. No Brasil, por exemplo, e a despeito de tantas proibições, foi uma biblioteca - a Real Biblioteca -, que aqui aportou logo após a chegada da Família Real em 1808, tornando-se elemento estratégico para a nossa independência política. Na famosa "conta" que o Brasil teve que pagar em 1825, para garantir a sua emancipação, a coleção de livros surgia em segundo lugar, logo depois da famosa "dívida pública".Como se vê livros e bibliotecas nunca ficaram apartados da política oficial, assim como tal prática de destruição não foi totalmente bem-sucedida. E a própria ficção ajudou a lembrar da destruição, mas também do fascínio que exercem os livros. Poucos esquecem do episódio que narra uma armadilha empregada contra D. Quixote, famoso personagem de Cervantes, enquanto este "tentava descansar o corpo moído". Foi quando o barbeiro e o cura entraram no cômodo onde estavam os livros "culpados" e lá acharam mais de cem grossos volumes: ali estava uma "livraria endemoniada", pensaram eles, e deram início a um "auto-de-fé". Por outro lado, Italo Calvino, no conto Um General na Biblioteca, descreve um episódio ocorrido na Panduria, "nação ilustre, onde uma suspeita insinuou-se um dia nas mentes dos oficiais superiores: a de que os livros contivessem opiniões contrárias ao prestígio militar". A operação, que levou à "invasão da biblioteca", resultou, não obstante, na conversão dos próprios militares ao mundo dos livros.Isso sem esquecer de Borges que em A Biblioteca de Babel concluiu que quando se proclamou que a biblioteca guardava todos os volumes do mundo, "a primeira reação foi de uma felicidade extravagante". Mas talvez o personagem que mais simbolize essa ambigüidade, expressa entre as práticas de destruição e sobrevivência, seja o professor Peter Kien - do livro de Elias Canetti, Auto-de-Fé -, eminente sinólogo, cuja obsessão eram os livros e sua seleta biblioteca, que lhe permitiam evitar o contato objetivo e prático com a realidade que o massacrava. "Dez mil livros e sobre cada um deles um fantasma acocorado. Às vezes ouvia-os virarem as páginas. Liam tão depressa como ele." E como nas demais histórias, também a biblioteca do professor Kien ardeu, com ele dentro, assim como antigamente se queimavam os bens junto com o morto. Mas seus fantasmas continuaram presentes, vivendo em seus acervos quase destruídos.Tantos fantasmas habitam nossos livros, ainda hoje repletos da utopia de conterem toda a enormidade do conhecimento e de acumularem a memória universal. A obra de Báez revela, assim, e pela porta dos fundos, como, para além destruições, os livros sempre resistiram ao fogo fácil da censura e dos terremotos dos homens.

Lilia Moritz Schwarcz é professora do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros livros, deAs Barbas do Imperador

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