sábado, maio 20, 2006

Alexandria: O futuro dos livros na rede

The New York Times


Kevin Kelly

Em diversos prédios de escritórios de todo o mundo, centenas de funcionário pagos pela hora se curvam sobre scanners e transportam livros empoeirados para avançadas cabines copiadoras. Eles estão reunindo a biblioteca universal página por página.
Leia abaixo o texto
O sonho é antigo: ter todo o conhecimento, passado e presente, em um único lugar. Todos os livros, todos os documentos, todos os trabalhos conceituais, em todas as línguas. É uma esperança familiar, em parte por que há muito tempo nós construímos uma biblioteca similar por um breve período.
A grande biblioteca de Alexandria, construída por volta de 300 a.C., foi criada para manter todos os pergaminhos em circulação no mundo conhecido. Em dado momento a biblioteca chegou a ter cerca de meio milhão de pergaminhos, que se estima serem aproximadamente de 30% a 70% dos livros existentes na época.
Mas mesmo antes desta grande biblioteca ser perdida, o momento em que todo o conhecimento poderia ser mantido em um único prédio havia passado. Desde então, a contínua expansão das informações sobrepujou nossa capacidade de armazená-la.
Até agora. Quando o Google anunciou em dezembro de 2004 que iria digitalizar os livros das cinco maiores bibliotecas de pesquisa para tornar seus conteúdos disponíveis para busca, a promessa de uma biblioteca universal foi ressuscitada. Na verdade, o levante explosivo da internet, indo do nada ao tudo em uma década, nos encorajou a acreditar novamente no impossível. Será que a há muito anunciada biblioteca de todo o conhecimento está realmente ao nosso alcance?
Os livros digitalizados não faziam muito sentido até recentemente, quando mecanismos de busca como Google, Yahoo, Ask e MSN surgiram. Quando milhões de livros tiverem sido digitalizados e seus textos forem disponibilizados em uma única base de dados, a tecnologia de busca nos irá possibilitar localizar e ler qualquer livro que já tenha sido escrito.
Esta é uma biblioteca muito grande. Mas você será capaz de alcançar dentro dela através de quase todos os aparelhos que tenham uma tela. Dos dias das tábulas de barro sumérias até agora, os humanos “publicaram” pelo menos 32 milhões de livros, 750 milhões de artigos e ensaios, 25 milhões de músicas, 500 milhões de imagens, 500 milhões de filmes, 3 milhões de vídeos, programas de tevê e curtas metragem e 100 bilhões de sites públicos na internet.
Todo este material é atualmente mantido em todas as bibliotecas e os arquivos do mundo. Quando estiver completamente digitalizado, todo ele pode ser comprimido (nos índices tecnológicos atuais) a discos rígidos de 50 petabytes. Com a tecnologia futura, tudo poderá ser disponibilizado em um iPod.
Por causa das questões de direitos autorais, ou copyright, e do fato físico da necessidade de virar as páginas, a digitalização dos livros tem engatinhado. No máximo, um livro em cada vinte passou do analógico para o digital. Até o momento, a livraria universal é uma livraria sem muitos livros.
Mas isso está mudando rapidamente. As corporações e bibliotecas de todo o mundo agora digitalizam milhões de livros por ano. A Amazon fez isso com milhares de livros contemporâneos. No coração do Vale do Silício, a Universidade de Stanford (uma das cinco biblioteca que colaboram com Google) está usando, na digitalização de sua coleção de oito milhões de livros, um robô da companhia suíça 4DigitalBooks.
Esta máquina, do tamanho de uma pequena caminhonete, vira as páginas de cada livro automaticamente conforme as copia através do scanner, em um índice médio de mil páginas por hora. Um operador humano coloca um livro em uma plataforma lisa e então prepara os dedos do robô para que virem as páginas – delicadamente o suficiente para que lide com volumes raros – sob os olhos de scanner das câmeras digitais.
Bill McCoy, o gerente geral dos negócios de e-publishing (publicação eletrônica) da Adobe afirma, “Alguns de nós tem centenas de livros em casa, podemos andar até uma enorme livraria e podemos pedir à Amazon que entregue no dia seguinte. O efeito mais dramático da biblioteca digital não se dará em nós, os que têm acesso aos livros, mas nos bilhões de pessoas em todo o mundo que são mal servidas pelas impressões em papel”.
São essas pessoas – estudantes de Mali, cientistas do Cazaquistão, idosos do Peru – que terão suas vidas transformadas quando a mais simples versão da biblioteca universal estiver a seu alcance.
Transformar letras impressas em pontos eletrônicos que possam ser lidos em uma tela é simplesmente o primeiro passo essencial. A mágica real acontecera no segundo ato, quando cada palavra em cada livro for conectada, agrupada, citada, extraída, desenvolvida, analisada, anotada, misturada, reunida novamente e entrelaçada mais profundamente na cultura do que jamais foi. No novo mundo dos livros, cada pedaço informa o outro, cada página lê todas as outras páginas.
Nos últimos anos, centenas e centenas de entusiastas amadores escreveram e cruzaram referências em uma enciclopédia completamente on-line chamada Wikipedia. Protegidos por este sucesso, muitos nerds acreditam que um bilhão de leitores juntos podem, com confiança, tecer as páginas de livros antigos, um hyperlink por vez.
Aqueles com paixão por um assunto em especial, um autor obscuro ou um livro irão, com o tempo, reunir as partes importantes. Multiplique este simples ato generoso por milhões de leitores e a biblioteca universal pode ser integrada por completo, por fãs para fãs.
Os mecanismos de busca estão transformando nossa cultura porque ornamentam o poder dos relacionamentos, que no fundo é o que são os links. Há cerca de 100 bilhões de páginas na internet e cada uma, em média, têm 10 links. Isso é um trilhão de conexões eletrizantes fluindo através da web.
Esta confusão de relacionamento é precisamente o que dá imensa força à internet. O mundo estático do conhecimento de um livro está para ser transformado pela mesma elevação de relacionamentos, conforme cada página de um livro descubra outras páginas e outros livros.
Quando os livros estiverem digitalizados, ler se tornará uma atividade em comunidade. Os marcadores de livros poderão ser compartilhados pelos leitores. As anotações nas margens poderão ser transmitidas. As bibliografias trocadas. Você poderá receber um alerta de que seu amigo Carl fez uma anotação em um de seus livros favoritos. Um momento depois, os links dele serão seus. De forma curiosa, a biblioteca universal se tornou um texto muito, muito grande: o único livro do mundo.
Os 15% dos 32 milhões de livros catalogados que estão no domínio público estarão disponíveis para que qualquer um empreste, imite, publique ou copie no atacado. Quase todo o esforço de digitalização das biblioteca americanas é direcionado a estes 15%.
Aproximadamente 10% de todos os livros atualmente impressos serão digitalizados logo. A Amazon tem pelo menos quatro milhões de livros, o que inclui edições múltiplas do mesmo título. Recentemente, diversas grandes editoras americanas se declararam ávidas por disponibilizar seus livros na esfera digital. Muitos deles estão trabalhando com o Google em um programa de parceria no qual a companhia digitaliza os livros e disponibiliza páginas de amostra (controladas pela editora).
Porém, o maior problema para as grandes editoras é que não têm certeza do que realmente possuem. Se você quiser se divertir escolha um livro fora de linha e tente determinar quem é o dono do seu copyright. Não é fácil. Não existe uma lista dos trabalhos registrados. A Biblioteca do Congresso não tem um catálogo. A editora não tem uma exaustiva lista, nem mesmo de suas próprias impressões (apesar de afirmarem que estão fazendo uma).
Quanto mais velho e obscuro, menor a chance de uma editora ser capaz de dizer (quer dizer, se a editora ainda existir) se os direitos foram revertidos ao autor, se o autor está vivo ou morto, se o copyright foi vendido à outra companhia, se a editora ainda tem estes direitos ou se planeja revivê-lo ou disponibilizá-lo para digitalização.
O que deixa 75% dos textos conhecidos no escuro. O limbo legal em torno de seu status como cópias impede que sejam digitalizados.
Ninguém foi capaz de desatar o nó do domínio dos direitos autorais até 2004, quando o Google criou uma solução inteligente. Além de digitalizar os 15% dos livros de domínio público com suas bibliotecas parceiras e os 10% de livros impressos pelas editoras parceiras, os executivos do Google declararam que eles também irão digitalizar 75% dos livros fora de linha que ninguém mais quer tocar.
Eles irão digitalizar o livro completo, o que permitirá que todo o texto seja incluído nos computadores internos do Google e buscados por qualquer um. Mas a companhia mostrará aos leitores apenas alguns trechos da obra por vez. Os advogados do Google argumentam que os trechos que a companhia propõe são algo como uma citação ou um excerto em uma crítica e por isso qualificam seu “uso legal”.
O plano do Google era digitalizar o texto completo de todos os livros das cinco maiores bibliotecas: os mais de 10 milhões de títulos em Stanford, Harvard, Oxford, Universidade do Michigan e Biblioteca Pública de Nova York. Todos os livros seriam incluídos e ligados, mas cada um apareceria nos resultados das buscas de forma diferente.
Para livros sem direitos autorais, o Google mostrará o conteúdo completo, página por página. Para os livros impressos, o Google deixará a cargo das editoras a decisão de quais partes dos livros serão mostradas.
Para os órfãos de copyright, o Google mostrará apenas trechos e qualquer pessoa capaz de estabelecer o proprietário dos direitos poderá pedir sua remoção por qualquer motivo.
Para muitos autores, essa campanha de retirada foi a salvação. Ainda que poucos autores de best sellers temam a pirataria, todos temem ainda mais a obscuridade. Permitir que suas palavras sejam descobertas nas mesma caixa de buscas universal que todas as coisas do mundo foi uma boa notícia para os autores e para a indústria, que precisava dela.
Alguns autores e muitas editoras vêem mais perigos do que genialidade nos planos do Google. Dois pontos os escandalizam: a possibilidade de cópia virtual do livro que for disponibilizado e a suposição do Google de que pode digitalizar primeiro e perguntar depois.
Quando as negociações falharam no outono passado, a Authors Guild e outras cinco grandes editoras processaram o Google. Seu argumento era simples: por que o Google não deveria dividir seus lucros de publicidade (se os tiver) com os proprietários dos direitos autorais? E por que o Google não deveria ter que pedir permissão do proprietário legal dos direitos autorais antes de digitalizar o livro?
O embate legal promete ser longo. Jane Friedman, CEO da HarperCollins, que está movendo uma ação contra o Google (enquanto permanece uma editora parceira), declarou, “Eu não espero que esse processo seja resolvido nesta vida”. Ela está certa. As cortes podem debater para sempre enquanto esta questão caminha pelos corredores da justiça.
No final, não irá importar, a tecnologia irá resolver esta descontinuidade primeiro. As fábricas de scanners chinesas, que operam por si mesmas, sem considerar as restrições da propriedade intelectual, continuarão criar scanner para a digitalização de livros. Conforme as tecnologias se tornarem mais rápidas, melhores e mais baratas os fãs podem fazer o que fizeram com a música e simplesmente digitalizar suas próprias bibliotecas.
Logo um livro fora da biblioteca será como um site fora da internet, como um peixe fora d’água. Na verdade, a única forma de os livros reterem sua autoridade esquecida na nossa cultura é ligar seus textos à biblioteca universal.
Na luta entre as convenções dos livros e os protocolos das telas, a tela prevalecerá. Nesta tela, agora visível para um bilhão de pessoas na Terra, a tecnologia de busca irá transformar livros isolados em uma biblioteca universal de todo o conhecimento humano.

(Kevin Kelly é o “dissidente sênior” da revista Wired e autor de “Out of Control: The New Biology of Machines, Social Systems and the Economic World" e outros livros)