quarta-feira, novembro 01, 2006

Muitos herdeiros, fortuna pouca



Rodrigo Manzano e Peter Fussy

Em 2 de julho de 1948, Monteiro Lobato concedia sua mais conhecida entrevista à Rádio Record. Entre irônico e um tanto reticente, Lobato lamentava apenas um fato de sua atribulada vida: "as crianças me condenam por uma coisa: que eu escrevi pouco para elas, que poderia ter escrito muito mais. Eu creio que sim. Perdi tempo escrevendo para gente grande, que é uma coisa que não vale a pena." Dois dias depois, Lobato morria de um derrame e essa sua fala derradeira, como se tivesse sido um testamento, deixou como herança um legado a quem o sucedesse - investir o próprio espírito, assim como ele o havia feito, na literatura infantil.
Passados quase 60 anos, são muitos os herdeiros de Lobato. Não há quem não o reconheça como o ancestral mais importante da produção de livros para crianças. Patriarca, influência, desbravador. A herança de Monteiro Lobato, por um lado, amplificou-se. Por outro, parece ter-se pulverizado no mercado editorial de livros infantis, cada vez mais rentável, mais produtivo e mais competitivo.
No tempo de Lobato, havia ele mesmo e uns tantos outros autores de literatura infanto-juvenil. Hoje, os livros proliferam nas prateleiras das livrarias, assim como escritores de obras para crianças. Guto Lins é um autor dessa geração pós-lobatiana, herdeiro e continuador de seu trabalho. Escreveu quase duas dezenas de livros infantis, ilustrou tantos outros e é reconhecido como um dos designers gráficos mais competentes do segmento - autor do livro Literatura infantil? - Projeto gráfico, metodologia, subjetividade, lançado em 2002 pela Editora Rosari - e professor de Design para Literatura Infantil na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Lins avalia o crescimento das demandas por livros dedicados às crianças a partir de três causas, bastante contemporâneas: o reconhecimento da criança como público-alvo do mercado da cultura, o desenvolvimento do parque gráfico brasileiro e a revisão pedagógica do papel da leitura e da própria criança. "A leitura do que seja uma criança também evoluiu muito nas últimas décadas. E o mercado editorial acompanhou essa evolução", afirma Guto Lins.
De fato, entre algumas oscilações, as editoras brasileiras encontraram no segmento infantil um mercado bastante lucrativo. Em alguns casos, a operação de todos os outros lançamentos é financiada pelo lucro dos livros dedicados às crianças. Dados da Câmara Brasileira do Livro (CBL) indicam que, entre 1994 e 2005, a média de livros infanto-juvenis lançados anualmente foi de 8,2 mil títulos e 44,6 milhões de exemplares. Em 1998, o número de títulos chegou a 14.500 e o pico de impressão aconteceu em 2002, quando as editoras despejaram 85,8 milhões de exemplares para consumo.
"A gente só entende a solidariedade se conhece a crueldade. Acho que é possível discutir com crianças assuntos que, talvez, para os adultos sejam polêmicos demais." Fernando Bonassi, autor

A euforia evidente esconde, no entanto, aspectos pouco discutidos no mercado de livros infantis: onde estão os autores, quem são e qual é a interface entre esse mercado e uma literatura que seja, de fato, articulada com os princípios estéticos e artísticos. A crítica literária Nelly Novaes Coelho, especializada em literatura infanto-juvenil, afirma que essa questão é central no debate sobre a função e qualidade desse gênero, atualmente. Professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora do Dicionário crítico de literatura infantil / juvenil brasileira (Edusp), Nelly lembra que "toda criação literária, para chegar ao leitor, precisa transformar-se em produto comercial. E, como produto, todos parecem iguais", ressaltando que cabe às "grandes e sérias" editoras estabelecer critérios honestos de publicação. Ela ressalta que os livros infantis devem apresentar as questões mais prementes do homem na pós-modernidade: "Quem sou eu? O que estou fazendo no mundo? Qual a minha tarefa? Quem é o outro?", entre tantos questionamentos. No entanto, nem sempre isso é alcançado pela atual produção, critica a professora. "Nem tudo que existe caudalosamente no mercado editorial é literatura autêntica", afirma a professora ao recordar de um período de ouro da literatura infantil no país, entre os anos de 1970 e 80, quando viu surgir nomes da envergadura de Ruth Rocha, Mary e Eliardo França, Mirna Pinsky, Gian Calvi, Ruth Rocha e Ana Maria Machado, ícones de uma geração de autores dedicados à literatura infantil. "Naquele momento, a literatura acertou o passo com o mundo em transformação à sua volta. Surgiu uma literatura autêntica, sintonizada com as interrogações atuais, ainda em aberto", relembra Nelly.
Uma das integrantes daquela geração, Eva Furnari - ganhadora do prêmio Jabuti de Melhor Ilustração e da terceira colocação na categoria Livro Infanto-Juvenil, nesse ano, com o livro Cacoete (Ática) - começou a escrever e produzir livros infantis ainda na década de 1970 e já nos anos de 1980 era reconhecida como portadora de um discurso novo no gênero. Eva Furnari entende que, apesar do espantoso crescimento desse mercado, o livro infantil deve comportar-se como "um espaço de reflexão, no qual se condensa e transmite certas mensagens da experiência humana, não como um conselho didático, mas como reflexões sobre nossos conflitos e questões" e que a falta de qualidade em alguns títulos atualmente disponíveis se dá pela "especialização e desenvolvimento da sociedade de consumo", quando se descobriu "a criança como uma grande fatia do mercado consumidor, onde estão inseridos os livros". "É importante oferecer à criança um produto de mais qualidade estética, menos estereotipada", recomenda.
Contemporânea de Eva e igualmente premiada, Ana Maria Machado, em palestra do 2º Encontro de Formação de Leitores e Literatura Infantil, realizado em São Paulo nos dias 1 e 2 de setembro, afirmou que muito da discussão sobre a leitura se concentra na sua importância, e em uma espécie de utilitarismo dessa experiência. "A literatura é um passeio, não uma expedição comercial interessada em obter vantagens, cuja importância possa ser medida em termos utilitários para o consumo", criticou Ana Maria.

"A criança, hoje, tem um acesso restrito à arte. E o livro infantil é uma possibilidade de acesso a essa introdução artística. Os bons livros, naturalmente."
Eva Furnari, autora e ilustradora
Além de terem se transformado em objetos de consumo, os livros infantis são, ainda, eficientes ferramentas ideológicas, de educação - no bom e no mal sentido - das crianças. A essa expectativa, a de que a literatura serve para ensinar conteúdos morais, soma-se um componente que interfere diretamente no ofício do autor: muito mais que um inventor, torna-se reprodutor de um discurso que se afasta da função libertadora da literatura. "Acho insuportável essa produção de coisas edificantes. Justamente porque afasta o leitor, ele não se identifica com tanta retidão", critica Fernando Bonassi, autor de O pequeno fascista (CosacNaify), entre outros. Este livro provocou uma positiva ressonância quando foi lançado, justamente porque seu protagonista, um menino que dá nome ao livro, é o oposto daquilo que se espera das personagens da literatura dedicada às crianças. "É preciso defender a liberdade antes de defender a retidão. As pessoas precisam escolher o que é bom e não serem forçadas a escolher. A experiência da vida é muito dura. As crianças já sabem disso. Parece que só as editoras não sabem", explica Bonassi, ao justificar os temas e a abordagem de sua literatura, uma exceção entre a produção de seus colegas autores.
O critério, muitas vezes, não é mais o estético. Há, além do mercado, uma outra força de influência na produção: o governo federal, maior comprador de livros infanto-juvenis no Brasil. "O governo tem uma influência muito forte", avalia a autora e ilustradora pernambucana Rosinha Campos, "se por um lado a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) é fundamental porque orientou alguns princípios, por outro, a lei está dirigindo a produção da literatura infantil a partir desses mesmos princípios". Essa influência do governo não existe à toa: os números revelam que o investimento público na compra de livros para crianças e adolescentes, entre os anos de 1998 e 2005, ultrapassa os R$ 273 milhões. Algumas editoras de livros didáticos e paradidáticos sobrevivem exclusivamente do investimento público. Esta estrutura alterou o paradigma da produção: "Antes, os autores eram senhores do que seria publicado; hoje, o autor foi substituído pelas editoras. É como se ele tivesse perdido a força", lamenta Rosinha, que também atua na formação de novos leitores, atendendo a demanda de professores que desejam inserir a literatura no seu cotidiano escolar. "Uma hora esse mercado vai explodir, porque não há leitores para tantos títulos", prevê Rosinha.
Discípulos de Lobato duelam na arena editorial. São muitos herdeiros para pouca fortuna.