sábado, dezembro 10, 2005

Abaixo um artigo de Elaine Serrão.... interessante esta visão histórica da Biblioteca de Alexandria.

BIBLIOTHECA ALEXANDRINA

Bibliotheca Alexandrina

Resumo
A Biblioteca de Alexandria, durante seis séculos, foi o centro cultural do mundo. Reuniu
sábios, das mais diferentes procedências, que nela desenvolveram trabalhos e pesquisas de
importância fundamental para o conhecimento. Bibliotecários eruditos tornaram acessível ao
mundo ocidental obras de toda origem. Calímaco criou uma forma de organização do
conhecimento registrado, cuja influência perpassou outras bibliotecas antigas e bibliotecas
medievais, chegando até nossos dias. A etimologia de palavras utilizadas na Antigüidade
explica seu uso contemporâneo na representação bibliográfica. A destruição da antiga
Biblioteca se reveste de lendas, de origens diversas, inclusive aquelas historicamente
preconceituosas. Conclui-se com um relato sumário sobre a revivescência e as principais
características da nova Bibliotheca Alexandrina, estabelecendo um paralelo entre a antiga
Biblioteca e a nova, como símbolos de conhecimento e coexistência entre diferentes seres
humanos e suas perspectivas.

Palavras-chave
Biblioteca de Alexandria; Catálogo.

THE BIBLIOTHECA ALEXANDRINA
Abstract
The Alexandrian Library has been the cultural center of the world for six centuries. It
congregated scholars, from different origins, that developed works and researches of
fundamental importance for knowledge. The learned librarians made accessible the works
from many sources to the western world. Callimachus created a kind of organization for
registered knowledge, which influenced ancient and medieval libraries, until our days. The
etymology of words used in Antiquity explains their contemporary use in bibliographic
representation. The destruction of the ancient Library is involved by legends of all kinds,
including ones of preconceived historical statements. A brief report about the revival and the
main characteristics of the new Bibliotheca Alexandrina establishes a parallel between the
ancient and the new one, as symbols of knowledge and coexistence between different human
beings and their views.
Keywords
Bibliotheca Alexandrina; Catalogue.

“Oh! senhor, todas as cidades devem ser declaradas abertas, mas parece
que a mente humana não sabe ao certo por que motivo fundou as cidades.
Para bombardeá-las?” (ANDRADE, 196-?)
Este trabalho, reunindo sinteticamente fatos históricos de diversas fontes, deriva-se de uma
apresentação oral, realizada durante a I Jornada Transdisciplinar de Leitura, acontecida na
UNESP/Araraquara-SP, em 2003, como parte das atividades do Grupo de Pesquisa em
História da Leitura, dos Livros e das Bibliotecas.
A apresentação se deu logo após a invasão anglo-americana ao Iraque (a de 2003) e a
inauguração da moderna Biblioteca de Alexandria, ou a revivescência da Biblioteca, em 16
de outubro de 2002; eventos conflitantes, cronologicamente tão próximos: de um lado, a
barbárie; de outro, a tentativa de renascimento simbólico da civilização.

1 POR QUE ALEXANDRIA?
Alexandria, porto de grande importância do Egito, por sua localização estratégica, situa-se
na convergência entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul. Hoje, quer também
significar a convergência entre o passado e o presente da história egípcia.
Figura 1: Alexandria no mapa do Egito Antigo
Fonte: Academia de Ciências Luventicus
Voltando-se no tempo, cerca de 297 a.C., Demétrio de Falera refugiou-se em Alexandria,
junto a Ptolomeu I.


A morte de Alexandre da Macedônia ocasionara a divisão dos reinos conquistados, entre
seus generais. A Ptolomeu I, ou Ptolomeu Sóter, coube o reino do Egito, inaugurando a
dinastia ptolomaica. Aristóteles havia sido preceptor de Alexandre, Demétrio e Teofrasto.
Ptolomeu I convida Teofrasto a ser preceptor de seu filho e esse indica Demétrio em seu
lugar. Assim, Demétrio, obrigado por sua atuação política a fugir de Atenas, achando-se em
completo ostracismo em Tebas, segue para Alexandria. Lá, convence o rei Ptolomeu I a
criar um Mouseion, isto é, Casa das Musas, ou Academia. Segundo Canfora (1996, p. 21),
Demétrio
Levou ao Egito o modelo aristotélico, e esta foi a chave de seu sucesso. Esse
modelo, que havia colocado o Perípato [aristotelismo] na vanguarda da
ciência ocidental, era agora adotado em grande estilo e sob proteção real em
Alexandria.
Parece que Demétrio fez ver a Ptolomeu que este seria um governante mais estável e melhor
se conhecesse os povos por ele governados e se conhecesse as obras sobre o “exercício do
mando” (CANFORA, 1996 p. 22). Enfim, a partir da reunião e leitura de textos dos povos,
sobre os povos e sobre governo, Ptolomeu poderia erigir um reino mais duradouro, o que na
verdade ocorreu, pois sua dinastia permanece, de 323 a.C., até cerca de 30 a.C. A influência
de Demétrio não dura tanto. Novamente afastado do poder, por seu discípulo Ptolomeu II
(Ptolomeu Filadelfo), foi posteriormente assassinado. Mas sua obra ficou na memória dos
antigos e em nossa herança cultural, mesmo que um tanto fantasiada.
Carl Sagan, em seu seriado televisivo “Cosmos”, declarou que, se não se incendiasse a
Biblioteca de Alexandria, os homens teriam chegado à lua no século XV. Exageros à parte,
não há dúvidas sobre a importância daquele centro de pesquisa, para o conhecimento e para
a humanidade de modo geral.
Cabe aqui um parêntese sobre a palavra “Biblioteca”. De origem grega, através do latim,
formada pelos termos “biblion” e “teca” - geralmente traduzidos como “livro” e “depósito”
ou “lugar de guarda” - conduz a um princípio equivocado. A Biblioteconomia, em
conseqüência, seria a coleta, organização e disseminação de livros. Muitos se perguntam se
a mudança de termos acarretaria mudança na imagem da profissão, não a vinculando
necessariamente a livros. No entanto, a palavra grega “biblion” não se poderia referir a
livros, uma vez que eles eram inexistentes para os gregos antigos; havia apenas rolos de
papiro. O papiro, este sim, vinha da cidade fenícia de Biblos (hoje no Líbano), o que
nominou o tipo de suporte em grego. Portanto, qualquer ligação entre o suporte e a profissão
não se dá através da etimologia, mas através da própria imagem que se dá a nossas
bibliotecas.
2 ALGUNS FATOS E INFORMAÇÕES
Existe uma diferença crucial entre fatos, dados, informações e conhecimento. Transmitimos
informações, de interesse ou não ao ouvinte, passíveis ou não de entendimento. Por outro
lado, o conhecer denota, não somente a apreensão, mas o completo discernimento e a
capacidade de transformar o informado em algo significativo, no contexto e dentro das
limitações do ouvinte. Nós, bibliotecários, organizamos, representamos e disseminamos
conhecimento registrado, mesmo que virtual, por meio de informações sintéticas,
representativas do conhecimento. Produzimos conhecimento, apenas dentro de nossa área
específica de atuação. Portanto, aqui, devido a minhas próprias limitações, restrinjo-me à
enumeração de fatos, dados, sem pretender gerar novo conhecimento.
Especialmente durante o reinado dos três primeiros Ptolomeus, Alexandria chega ao ponto
máximo, tornando-se na verdade o centro cultural do mundo. Jacob (2000, p. 47) explica o
interesse da nova dinastia pela criação e conservação de tal biblioteca:
Os ganhos políticos e simbólicos são múltiplos. Nessa terra do Egito
onde, segundo Platão, um deus inventou a escrita quando a civilização
helênica estava na infância, os novos soberanos querem afirmar a
primazia da língua e da cultura gregas, dotar sua capital com uma
memória e raízes artificiais, compensar sua marginalidade geográfica por
uma centralidade simbólica: toda a memória do mundo numa cidade nova,
a oeste do delta do Nilo, uma cidade de imigrados, de colonos, de
militares e de aventureiros, de gregos, de judeus, de núbios e de egípcios.
Estudiosos, sábios, artistas encaminhavam-se para lá, ou lá estudavam. Inúmeros avanços do
conhecimento se deram naquele “centro de excelência”, em gramática, matemática,
astronomia, geometria, mecânica e medicina. Citam-se, entre os grandes nomes que lá
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estiveram e trabalharam: Eratóstenes, Aristarco, Hiparco de Bitínia, Euclides, Apolônio,
Arquimedes, Heron, Herófilo, Erístrato, Hipácia - mulher sábia, astrônoma e matemática,
cujo assassinato em 415 d.C. marca o fim da era científica de Alexandria, na Antigüidade.
Diz-se que o evangelista Lucas (Lucano), antes de sua conversão, morou em Alexandria,
onde estudou medicina.
Figura 2: Euclides
Fonte: Academia de Ciencias Luventicus
Quanto aos números, existem interpretações variadas, uma vez que não há dados exatos e as
fontes divergem. Alega-se que, em seu apogeu, chegou a ter 700.000 rolos, os quais não
correspondem, logicamente, a 700.000 obras, mas a um número bem menor. Segundo
Canfora (1996, p.171), diferentes autores citam entre 400.000 e 90.000; porém, Canfora faz
a distinção entre “rolo” e “obra”, pela origem do termo grego. Assim, Alexandria teria
possuído 400.000 rolos, correspondendo a 90.000 obras. E foram duas as bibliotecas: a
maior, localizada no Museu, e outra, posterior, quando a primeira já não era suficiente,
denominada Serapeum, pois situava-se no templo do deus Serápis, no distrito sul da cidade.
O Serapeum guardava cerca de 40.000 rolos.
As obras se adquiriam de formas variadas. A mais interessante constituía-se na cópia de
todos os livros encontrados nos navios que aportavam em Alexandria: revistava-se o navio,
os livros eram levados à Biblioteca, copiados, e então devolvidos para que o navio partisse.
Quanto às obras sagradas judaicas, Ptolomeu I as fez traduzir por um grupo de setenta e dois
sábios, trazidos de Jerusalém, que levaram setenta e dois dias para concluir seu trabalho
(CANFORA, 1996). Foi a primeira tradução do Antigo Testamento, do hebraico para o grego.
Ptolomeu III mandou cartas aos soberanos do mundo, solicitando-lhes livros, por
empréstimo, para que fossem copiados. O único fato remarcável, neste primeiro
“empréstimo entre bibliotecas”: nem sempre os originais eram devolvidos, mas as cópias...
Supõe-se que houvesse, ao mesmo tempo, cerca de trinta a cinqüenta estudiosos trabalhando
no Museu, o que levou Timão, filósofo cético, a denominá-lo “Gaiola das Musas”
(CANFORA, 1996, p. 39): “Na populosa terra do Egito, são criados uns garatujadores
livrescos que se bicam eternamente na gaiola das Musas”. O que se pode dizer sobre
excentricidades, rivalidades, discordâncias, quando se reúnem dezenas de pessoas, sábias ou
não tão sábias, vivendo em conjunto? Apenas que são humanos e em nada diferem dos
centros acadêmicos da atualidade. Apesar de tudo, a ciência progrediu e progride, e não se
pode exigir que as pessoas se despojem de suas naturezas, de seus problemas, de suas
formações e de suas crenças, “só” porque entram em um recinto de saber. Não nos despimos
de nossas características como trocamos de roupa; não as deixamos em casa quando saímos
à rua. O fator subjetivo mostra-se em todas as pesquisas, em todos os escritos, em todos os
relacionamentos pessoais; a única maneira de minimizá-lo é reconhecê-lo. Portanto, a sátira,
embora hilária, não é mais do que o reconhecimento de que em Alexandria trabalhavam
pessoas, que muito contribuíram para o conhecimento universal. Tais pessoas puderam
estudar, pesquisar e desenvolver o conhecimento, graças à maior característica de
Alexandria: a tolerância, a aceitação dos diferentes. Sábios das mais diversas origens:
raciais, étnicas, pátrias, religiosas, filosóficas, puderam-se reunir e viver em paz, conviver e
crescer. Alexandria se fez grande pela transigência.
3 BIBLIOTECÁRIOS
Na Biblioteca de Alexandria, os bibliotecários-chefes, por seu turno, eram escolhidos pelos
próprios reis. Segundo uma das listas (página oficial da Biblioteca), não absolutamente a
definitiva nem completa, acrescida de informações dadas por Fonseca (1992, p. 104),
chefiaram a Biblioteca: Zenódoto de Éfeso, “notável gramático, responsável pela primeira
edição crítica de Homero e pela Teogonia de Hesíodo”; Apolônio de Rodes; Eratóstenes de
Cirene; Aristófanes de Bizâncio, que “organizou edições de Homero, Hesíodo, Píndaro
Eurípedes, Aristófanes, Anacreonte”; Apolônio; Kidas; e Aristarco de Samotrácia, discípulo
de Aristófanes de Bizâncio, que “com ele colaborou na edição de autores gregos.”
Há controvérsia se o substituto de Zenódoto teria sido Calímaco de Cirene. De qualquer
modo, Calímaco foi seu mais importante bibliotecário e cabe-lhe um lugar particular neste
esboço.
Nascido no norte da África, no início do século III a.C., Calímaco “viveu em Alexandria
durante a maior parte da vida, primeiro ensinando numa escola dos arredores, depois
trabalhando na biblioteca (MANGUEL, 1997, p. 219).” Passou à história como o organizador
do catálogo da Biblioteca, que “sozinho ocupava uns 120 rolos” (CANFORA, 1996, p. 41).
Porém, na verdade, não se tratava de um catálogo tal como o conhecemos hoje.
Cabe observar que, apesar de encararmos a catalogação como representação descritiva, e o
catálogo – seu produto – como algo peculiar às bibliotecas, as palavras em grego possuem
o mesmo sentido da palavra latina, da qual se derivou classificação. Catálogo origina-se do
grego Kata – “de acordo com” ou “subjacente a” – e logos – “lógica” ou “razão” – ou seja,
“algo de acordo com a lógica”, remetendo-nos diretamente ao latim classificare. Ou seja,
catalogar e classificar seriam os mesmos processos, de origens diferentes, o que explica o
catálogo de Calímaco.
Calímaco organizou grande parte do acervo por assunto, talvez se consituindo nos
primórdios da localização relativa, em vez de localização fixa. Não concluiu seu trabalho,
continuado por outros bibliotecários que lhe sucederam. A figura a seguir apresenta rolos
indexados, por meio de etiquetas pendentes, embora não se possa dizer se a figura é real, ou
parte dos mitos e fantasias tão comuns em todo material relativo a Alexandria.

Manguel (1997, p. 219-220) traz-nos observações interessantíssimas sobre tais catálogos,
ligando-os diretamente às práticas biblioteconômicas contemporâneas e permitindo-nos
chegar a inferências singulares.
Primeiramente, tome-se a divisão em assuntos, ou gêneros: teatro, oratória, poesia lírica,
legislação, medicina, história, filosofia e miscelânea. A divisão temática, embora nos pareça
arbitrária (e Manguel o declara), sempre se vinculou a uma visão de mundo, fosse esta uma
corrente filosófica ou uma crença. Calímaco tomou como base a divisão aristotélica do
conhecimento. Os modernos sistemas de classificação bibliográfica, pelos quais
organizamos as bibliotecas, derivam-se da categorização do conhecimento, elaborada por
Bacon (invertida por William Torrey Harris e base para a Classificação Decimal de Dewey,
apud WYNAR, 1980, p. 406-407). A coincidência entre a categoria “miscelânea” de Calímaco
e a classe 0, ou 000, dentros dos sistemas Classificação Decimal Universal e Classificação
Decimal de Dewey - “Generalidades”, também se afigura muito significativa. Se tais
sistemas nos parecem arbitrários - e de fato o são - isto se deve à própria corrente filosófica
à qual se atrelam. Por exemplo, a grande ênfase dada à religião cristã, em especial a
protestante, ou à filosofia ocidental, prende-se à formação dos responsáveis pelos sistemas
contemporâneos.
Em segundo lugar, Calímaco organizou os volumes, dentro dos assuntos, em ordem
alfabética. Desde então, portanto, existia a prática da organização por assuntos e alfabética
por autor, dentro dos assuntos. Em terceiro lugar, utilizou estantes, ou mesas, ou tábuas -
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pinakoi em grego - para a separação temática. Seus catálogos nos ficaram conhecidos como
pinakoi. Porém, o mais remarcável é o nome pelo qual nos chegaram os sistemas,
usualmente denominados “tabelas”.
“Tabela” é palavra de origem latina, tabella, isto é, “pequena tábua”, “quadro de madeira”,
derivada de tabula, “mesa”, “tábua”, “estante”. Assim, do grego pinakoi, passa-se ao latim
tabula e a nossas tabelas de classificação bibliográfica, em descendência direta de Calímaco
e sua forma de organização do conhecimento. Manguel (1997, p. 220-223), entre outros
autores, ressalta a ascendência da Biblioteca de Alexandria, em especial de Calímaco, na
organização de diferentes bibliotecas da Antigüidade e da Idade Média. Singularmente
instigante é o uso de tabulae por Richard de Fournival, no sec. XIII (MANGUEL, 1997),
naquele mesmo sentido, representando o vínculo mais estreito entre Calímaco e nossas
tabelas. Quem diria hoje, em pleno século XXI, ainda sermos influenciados, com todos os
nossos avanços tecnológicos, por Calímaco e a Biblioteca de Alexandria?

4 MITOS E, OU, FATOS SOBRE A DESTRUIÇÃO
Foi nesse mundo que irrompemos, bárbaros, apressados, que não fomos a
destruí-lo, mas a salvá-lo em seu valor mais puro. Se alguma coisa
profanaram nossas botas, é que assim é a guerra: minuto a minuto, uma
impiedosa profanação. (BRAGA, correspondente de guerra, durante a II
Guerra Mundial ([196?]).
A Biblioteca de Alexandria permaneceu como centro cultural do mundo até 48 a.C.
Entramos agora no terreno das especulações, pois as lendas, mesmo que baseadas em fatos
reais, ou parcialmente reais, ou totalmente ilusórios, despertam mais interesse do que a
verdade. Há diferentes teorias sobre a destruição da biblioteca.
A primeira delas trata do incêndio ocasionado, voluntária ou involuntariamente, por Júlio
César. Pode-se declarar que César, por amor a Cleópatra, tomou seu partido, na luta desta
contra seu irmão Ptolomeu XIII, pelo reino do Egito. Pode-se também crer que,
estrategicamente, Alexandria fosse tão valiosa, como porto, como situação geográfica, que
se tornara indispensável conservá-la em mãos confiáveis. Seja qual for o motivo, entram em
guerra, e Ptolomeu XIII e seus exércitos sitiam Júlio César e o palácio ptolomaico por mar.
Para derrotar o cerco, Júlio César manda incendiar os barcos egípcios no porto. Dali, o
incêndio se espalha, tendo queimado dezenas de milhares de livros da Biblioteca, ou a
própria Biblioteca (dependendo da fonte narradora). O incêndio existiu, de fato; os navios
egípcios se queimaram e dezenas de milhares de rolos também. Quanto ao resto da história...
o paciente leitor pode escolher sua versão.
Dificilmente Júlio César, ele próprio um homem culto, permitiria a destruição dos livros.
Maior é a probabilidade de que 40.000 rolos, como descrito por Sêneca (AMAN, 2001), se
encontrassem armazenados no porto, aguardando transporte para Roma, e se tenham
incendiado junto com os navios. Por outro lado, as construções egípcias da época se faziam
em materiais resistentes ao fogo - pedra e tijolos, sem uso de madeira; donde se pode
deduzir que não se queimariam facilmente. Arab (2000) contesta tal afirmativa. Com tantos
documentos contraditórios, nada há que garanta ou negue, de forma definitiva, essa versão.
Sabe-se apenas que a Biblioteca continuou seu percurso histórico de centro cultural do
mundo por muito tempo ainda. Segundo Aman (2001), tempo suficiente para ser “destruída”
também por Augusto, por Aurélio e por Diocleciano, os dois últimos no século III d.C. Já o
historiador Pierre Vidal-Naquet (1989) situa a destruição no século III, durante o reinado de
Aureliano, pelas tropas da rainha Zenóbia, de Palmira (atualmente na Síria).
O segundo incêndio narrado ocorreu em 391 d.C., sendo Teodósio o imperador, Teófilo, o
patriarca de Alexandria, e o cristianismo, a religião oficial do Estado. O zelo de Teófilo em
defesa do cristianismo o teria levado à destruição de todas as obras pagãs, assim como teria
ordenado a morte de Hipácia, em 415. Para alguns, destruiu o Serapeum e a biblioteca
“filha”; enquanto a Biblioteca maior já teria desaparecido. Para outros, o Serapeum
transformou-se em templo cristão. De acordo com o Grupo de Cosmología y Astronomía, da
Academia de Ciencias Luventicus (2002), o historiador Orósio visitou Alexandria em 415 e
confirmou o desaparecimento da Biblioteca no século V. O mesmo Grupo narra a morte
trágica de Hipácia, arrastada por um carro cheio de monges e queimada viva nos restos da
Biblioteca. Nada impossível, mas onde estará a verdade?

O terceiro incêndio, o mais pitoresco, reflete nosso preconceito ocidental. Imputado a Amr
Ibn al-As, conquistador de Alexandria em 642, alude à seguinte história. O guerreiro teria
perguntado a seu califa, Amr Ibn al-Khattab, o que fazer com os livros da Biblioteca,
respondendo este: “Se o que estiver escrito nos livros concordar com a palavra de Deus
[Alá], não são necessários; se discordar, não são desejáveis. Então, os destrua.” (AMAN,
2001). Cânfora (1996, p. 80-93) descreve longamente o episódio, dedicando-lhe um capítulo
inteiro de seu livro. Mas, para a aceitação dessa narrativa, faltam alguns esclarecimentos:
- por que, dos textos produzidos ou guardados em Alexandria, parte nos chegou através dos
árabes, traduzidos em língua árabe?
- como explicar a discrepância entre a narrativa de Orósio, que considera 415 o ano final da
Biblioteca, e a conquista árabe em 642?
- como conciliar o altíssimo desenvolvimento científico e tecnológico dos árabes, àquele
tempo, com uma visão fanática e ignorante?
À guisa de remate, vale lembrar uma historieta contada por Manguel (1997, p. 221):
No século X, por exemplo, o grão-vizir da Pérsia, Abdul Kassen Ismael,
para não se separar de sua coleção de 117 mil volumes quando viajava,
fazia com que fossem carregados por uma caravana de camelos treinados
para andar em ordem alfabética.
Não se trata de postura bibliofóbica, pelo visto... Ademais, a cidade já havia perdido sua
condição de capital do Egito, embora guardasse importância como porto e centro comercial.
A última versão, mais prosaica, recolhida por Aman (2001), levanta uma causa unicamente
econômica. Ptolomeu VI teria cortado o suprimento de papiro à Biblioteca de Pérgamo. O
rei de Pérgamo, assim, buscou um novo tipo de suporte para os registros, aperfeiçoando a
técnica de curtimento do couro (de cabra ou carneiro) e concebendo o pergaminho, muito
mais durável. O novo material possibilitou a criação dos primeiros códices, mais práticos do
que os rolos de papiros. Alexandria não estava em condições de mudar todo seu acervo -
manuscrito - e entrou em declínio.
Edmondson, em documento para a Unesco sobre a salvaguarda da herança documentária
(2002, p. 2), lista como causas de risco a este patrimônio:
- decomposição natural dos materiais, nos quais se registram as obras (caso do papiro,
altamente perecível);
- calamidades naturais, como enchentes e incêndios;
- desastres causados pelo homem, como pilhagens, acidentes ou guerras (aos quais se
poderiam acrescentar as lutas internas, causadas por fanatismo, ignorância, disputas de
poder e de bens);
- deterioração gradual, resultado da ignorância ou negligência humanas na preservação.
A Biblioteca de Alexandria, como nossas modernas bibliotecas, provavelmente sofreu -
mais de algumas e menos de outras - de todas essas causas, até mesmo por sua longa
permanência na história: ao todo, cerca de seis séculos. Deixou-nos uma herança indelével,
um exemplo a ser seguido, de busca do conhecimento e tolerância. Certamente o homem
moderno tem muito a aprender das lições de Alexandria. Por isso, o grande esforço da
Unesco, juntamente com o governo egípcio, durante mais de uma década, para o
reflorescimento daquele centro cultural e de pesquisa.
5 A NOVA BIBLIOTHECA ALEXANDRINA
A partir de 1986 iniciaram-se os estudos para a nova Biblioteca, em esforço internacional
conjunto, encabeçados pela Unesco e pelo governo egípcio.
ARTIGO
“Em 26 de junho de 1988 o presidente do Egito, Hosni Mubarak, assentou a pedra
fundamental para a Bibliotheca Alexandrina, em área de cerca de 32.500 m2, adjacente ao
campus principal da Universidade de Alexandria [...]”, um mirante sobre o mar (AMAN,
2001.
Em setembro do mesmo ano, a Unesco e a União Internacional de Arquitetos, com
financiamento do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, estabeleceram um
concurso internacional de arquitetura, para o projeto da nova Biblioteca. Dos mil trezentos e
vinte e quatro pedidos de participação, por arquitetos de setenta e quatro países,
concorreram quinhentos e vinte e quatro projetos, de cinqüenta e oito países. Venceram o
concurso, em primeiro lugar: Snohetta Arkitektur Landskap, Oslo, Noruega (projeto
executado). Em segundo lugar: grupo Manfredi Nicoletti, Roma, Itália. Em terceiro lugar:
José Eduardo Ferolla e equipe, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
Figura 5: Bibliotheca Alexandrina, vista do cais
Fonte: www.unesco.org
Grunberg (1998) e Tocatlian (2003) descrevem as críticas e o ceticismo internacionais,
envolvendo as diferentes etapas da construção. De início, intelectuais e jornalistas egípcios
se opuseram ao projeto, questionando “a necessidade de tal biblioteca, levantando objeções
relativas a seu custo, seu projeto e sua finalidade” (TOCATLIAN, 2003.). Grunberg (1998)

analisa o ceticismo internacional, em se tratando de projeto de tal envergadura. Apesar de
todas as objeções e dificuldades, graças a suportes financeiro e intelectual internacionais,
aos esforços dos responsáveis pelo projeto, na Unesco e no governo egípcio, hoje a
Biblioteca lá está. Grunberg (2003), adequadamente, diz não se tratar de um renascimento,
posto que a atual Biblioteca em nada se assemelha à antiga, mas de uma revivescência, um
renouveau. No local do palácio dos Ptolomeus e da antiga Biblioteca, cria-se o novo, o
moderno, uma Biblioteca ao mesmo tempo pública e de pesquisa.
O conceito do projeto se constitui em um círculo, representando o sol, tão importante na
mitologia egípcia e, ao mesmo tempo, o símbolo do que ilumina e aquece o mundo e os
homens. A construção é circundada por um muro, em forma de meia-lua, com inscrições de
letras em alfabetos de cento e vinte idiomas.
Figura 7: Maquete do projeto
Fonte: www.unesco.org
Figura 6: (Inscrições em diferentes alfabetos)
Fonte: www.unesco.org
O texto de Serageldin (2001), diretor-geral da Biblioteca, traz seu programa, citando as
palavras da esposa de Mubarak:

- será a janela do mundo para o Egito;
- será a janela do Egito para o mundo mediterrâneo e para o mundo em geral;
- florescerá com o desafio das novas oportunidades tecnológicas do novo milênio e a aurora da era
digital; e por último, porém não menos importante,
- será o centro pujante de estudo e debate e o eixo do diálogo intercultural e intercivilizacional.
Abdelhady (2003) aponta como objetivo maior: “Honrar o passado, Celebrar o presente e
Inventar o futuro.”
Do ponto de vista organizacional, a Bibliotheca Alexandrina é uma entidade autônoma,
vinculada diretamente ao Presidente da República do Egito (TOCATLIAN, op. cit.).
Gerenciam-na: um Conselho de Patronos (presidido pelo Presidente do Egito e do qual
fazem parte, entre outros membros, o Diretor-Geral da Unesco, o Presidente da França e a
Rainha da Espanha), um Conselho de Curadores e um Diretor-Geral.
O complexo cultural é formado por três elementos: um centro de conferências, que já
existia, o novo Planetário e a nova Biblioteca, todos subterraneamente interligados.
Compreende:
- a Biblioteca, com cerca de 69.000m2, em onze andares, e que consiste de:
Biblioteca Principal, Biblioteca de Multimeios, Biblioteca “Taha Hussein” para
deficientes visuais, Biblioteca Juvenil e Biblioteca Infantil; ainda abarca as
seguintes salas de Leitura: de Microfilmes, de Manuscritos, de Obras Raras. Prevê
um acervo de até oito milhões de volumes (no momento, há cerca de 400.000).
© Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v . 1, n. 2, p.71-91, jan./jun. 2004 – ISSN: 1678-765X.
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ARTIGO
Figura 8: Salões de leitura - Foto de Mohamed Nafee
Fonte: http://www.bibalex.org
- Museus: o próprio Planetário, abaixo do qual se encontra o Museu de História das
Ciências, e o Museu de Manuscritos. Ainda se prevêem: o Museu de Antigüidades
e o Museu de Ciência Exploratória, destinado ao público infanto-juvenil;
Figura 9: Planetário e Museu de Ciências - Foto de Mohamed Nafee
Fonte: http://www.bibalex.org
- Galerias Permanentes e de Exposições Itinerantes. Já se acham em funcionamento:
a Galeria de Impressões de Alexandria e a Galeria “O Mundo de Shadi Abdel
Salam”, artista e cineasta egípcio.
- outros organismos: Escola Internacional de Estudos em Informação, Instituto de
Caligrafia, Laboratório de Restauração de Manuscritos e cinco institutos de
pesquisa;

- Centro de Conferências, com 3.200 lugares.
Muito interessante a organização do acervo, por andares, simbolizando uma pirâmide do
conhecimento, a partir da Classificação Decimal de Dewey:
Figura 10: Organização do acervo nos andares
Fonte: Abdelhady (2003)
Novamente, devemos aprender, com Alexandria, uma forma diferente de visualizar o
conhecimento.
“Egito, a mais antiga civilização permanecente na Terra, é fonte de contínua
inspiração e interesse para o mundo” (SERAGELDIN, 2001).
Por sua importância estratégica, o Egito sofreu várias invasões e foi objeto de inúmeras
disputas, até sua independência completa, ocorrida somente no século XX (cf. The History
of Alexandria across the ages). Perdeu tesouros históricos para museus de todo o mundo,
mas conseguiu preservar sua cultura e muitos de seus monumentos, em meio à diversidade
que o caracteriza.
Porta, ou janela, como diz seu programa, entre o Oriente e o Ocidente, entre os hemisférios
norte e sul, ao reflorescer sua Biblioteca, quer também reviver seu espírito, unindo passado e
futuro. Pretende tornar-se um locus de pesquisa, de preservação do saber e de diálogo. Não
há lugar nem momento mais adequados.
Quando se tenta, novamente, a imposição de um pensamento hegemônico, de modelos
únicos, de visão singular do mundo, seja pela força da barbárie, seja pela força econômica,
seja pelos mecanismos sutis da indústria cultural, a Bibliotheca Alexandrina deve propiciar,
tanto ao Ocidente como ao Oriente, a oportunidade de conhecer mais um ao outro,
compreendendo-se mutuamente. A compreensão é a primeira etapa da aceitação e da paz.
Para Adorno (1995, p. 184) “paz é um estado de diferenciação sem dominação, no qual o
diferente é compartido”.
A Bibliotheca Alexandrina, por tudo isso, torna-se o moderno símbolo da coexistência, da
união de esforços e da paz.

REFERÊNCIAS
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Eliane Serrão Alves Mey
Mestre em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de Brasília, Doutora em Ciências da
Comunicação pela Universidade de São Paulo, professora do Departamento de Ciência da Informação,
Universidade Federal de São Carlos.
e-mail: elimey@terra.com.br
Agradecimentos: Mais uma vez, agradeço a contribuição desinteressada e profissional de minha amiga
Marília Ludgero Motta da Silva, grande revisora, desta vez com o auxílio inestimável de Sidney Barbosa,
professor de Letras da UNESP/Araraquara e coordenador de nosso Grupo de Pesquisa. Ambos foram
incansáveis na busca em tornar este artigo mais agradável à leitura. Chloë Ariadne Furnival auxiliou na versão
do resumo para o inglês.
Artigo aceito para publicação em: 01/11/2003
© Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v . 1, n. 2, p.71-91, jan./jun. 2004 – ISSN: 1678-765X.