quinta-feira, dezembro 15, 2005

Sobre a banalização de "bibliotecas"

Hoje, 15 de dezembro de 2005, vamos ter nossa pré-reunião com a nova equipe que vai gerenciar o Conselho Regional de Biblioteconomia 8ª Região, entre 2006 a 2008.... aguardo muito dinamismo e da minha parte, o que puder fazer para inovar e levar avante a categoria dos profisssionais bibliotecários, será feito... uma coisa que devemos questionar, refletir e debater é a banalização do que o público entende por biblioteca... fico abismada como qualquer monturo de livros velhos, bichados, recolhidos de lixo se transformam em bibliotecas e o catador se transforma em bibliotecário!!! Precisamos reverter esse quadro, na minha opinião... porco... uma falta de consideração ao próximo, que vai manusear papéis velhos e contaminados por bactérias... Como bibliotecária não aceito esta falta de politicas públicas para a formação de acervos... tudo bem que pessoas queiram descartar livros, que, por um motivo ou outro, não cabem nas suas casas, já finalizaram sua utilidade para estudo ou leitura... mas esses livros teriam que ser recolhidos por uma Central, higienizados, restaurados e depois do processamento tecnico e guardado em locais próprios serem disponibilizados para a comunidade... eu também quero dinheiro do BNDES e projeto do Niemayer para montar uma biblioteca...

domingo, dezembro 11, 2005

O movimento da competencia informacional

O movimento da competência informacional: uma perspectiva para o letramento informacional

Bernadete Campello

Mestre em biblioteconomia
Professora da Escola de Ciência da Informação da UFMG E-mail: campello@eci.ufmg.br

INTRODUÇÃO

Nos dias de hoje, as mudanças por que tem passado a biblioteconomia vêm ensejando o surgimento de novos termos que possam representar de forma mais clara as atividades que, na atualidade, são demandadas do profissional da informação. Competência informacional (information literacy) é um desses termos. Usado inicialmente nos Estados Unidos para designar habilidades ligadas ao uso da informação eletrônica, ele foi assimilado pela classe bibliotecária e atualmente insere-se de forma vigorosa no discurso dos bibliotecários americanos, sendo alvo de interesse crescente por parte de bibliotecários de outros países (Bruce, 1998; Bundy, 2001), aparecendo como tema de inúmeras publicações institucionais e constituindo a base de políticas de ação pedagógica de vários sistemas de bibliotecas escolares.

No Brasil, o termo está em fase de construção. Foi mencionado pela primeira vez por Caregnato (2000, p. 50), que o traduziu como “alfabetização informacional” em um texto em que propunha a expansão do conceito de educação de usuários e ressaltava a necessidade de que as bibliotecas universitárias se preparassem para oferecer novas possibilidades de desenvolver nos alunos habilidades informacionais necessárias para interagir no ambiente digital. A autora não se aprofundou na questão terminológica, acabando por preferir o termo habilidades informacionais. Hatschbach (2002), citado por Dudziak (2003), também enfoca a information literacy no contexto digital, utilizando o termo no original.

O trabalho de Dudziak (2003) discutiu a information literacy além dos limites da tecnologia, considerando-a um conceito inclusivo, capaz de englobar as diversas gamas de literacy que surgiram na última década* e que, segundo a autora, constituem aspectos compar-timentalizados da literacy. Propõe diversas possibilidades para a tradução do termo: “alfabetização informacional, letramento, literacia**, fluência informacional, competência em informação”, mostrando preferência

Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar a competência informacional (information literacy), que surgiu nos Estados Unidos na década de 1970 e representa o esforço da classe bibliotecária americana para ampliar o seu papel dentro das instituições educacionais. O movimento ocorreu em circunstâncias peculiares ao contexto daquele país, acompanhando a evolução das ações educativas da classe bibliotecária. O discurso da competência informacional desenvolve-se ao redor de quatro aspectos: a sociedade da informação, as teorias educacionais construtivistas, a tecnologia da informação e o bibliotecário. Considerando-se que o termo começa a aparecer na literatura brasileira de biblioteconomia e ciência da informação, propõem-se o estudo mais aprofundado do conceito e o estabelecimento de uma agenda de pesquisa para o Brasil, buscando sua inserção nas teorias sobre letramento, que se vêm desenvolvendo na área de educação.

Palavras-chave

Competência informacional; Habilidades informacionais; Educação de usuários; Biblioteca escolar; Letramento.

The moviment of informational competency: a perspective for infoliteracy

Abstract

This study aims to analyse the information literacy movement, which started in the United States in the seventies. That movement represents the effort the American library profession is doing in order to get more visibility in the educational community. Its appearance occurred in peculiar circumstances, along with changes in the librarian teaching role concerning bibliographic instruction. The discourse of the information literacy movement evolves around the following aspects: the information society, constructivist perspective of education, information technology and the librarian. Considering the word is coming into view in the Brazilian literature on library and information science this article suggests the establishment of a research program towards our reality in an attempt to integrate information literacy in the education field.

Keywords

Information literacy; User education; School library.

* A autora apresenta os seguintes exemplos dessas literacies: “cultural, tecnológica, acadêmica, marginal”.

**Literacia é o termo que em Portugal corresponde a letramento.



INTRODUÇÃO

Nos dias de hoje, as mudanças por que tem passado a biblioteconomia vêm ensejando o surgimento de novos termos que possam representar de forma mais clara as atividades que, na atualidade, são demandadas do profissional da informação. Competência informacional (information literacy) é um desses termos. Usado inicialmente nos Estados Unidos para designar habilidades ligadas ao uso da informação eletrônica, ele foi assimilado pela classe bibliotecária e atualmente insere-se de forma vigorosa no discurso dos bibliotecários americanos, sendo alvo de interesse crescente por parte de bibliotecários de outros países (Bruce, 1998; Bundy, 2001), aparecendo como tema de inúmeras publicações institucionais e constituindo a base de políticas de ação pedagógica de vários sistemas de bibliotecas escolares.

No Brasil, o termo está em fase de construção. Foi mencionado pela primeira vez por Caregnato (2000, p. 50), que o traduziu como “alfabetização informacional” em um texto em que propunha a expansão do conceito de educação de usuários e ressaltava a necessidade de que as bibliotecas universitárias se preparassem para oferecer novas possibilidades de desenvolver nos alunos habilidades informacionais necessárias para interagir no ambiente digital. A autora não se aprofundou na questão terminológica, acabando por preferir o termo habilidades informacionais. Hatschbach (2002), citado por Dudziak (2003), também enfoca a information literacy no contexto digital, utilizando o termo no original.

O trabalho de Dudziak (2003) discutiu a information literacy além dos limites da tecnologia, considerando-a um conceito inclusivo, capaz de englobar as diversas gamas de literacy que surgiram na última década* e que, segundo a autora, constituem aspectos compar-timentalizados da literacy. Propõe diversas possibilidades para a tradução do termo: “alfabetização informacional, letramento, literacia**, fluência informacional, competência em informação”, mostrando preferência pelo último, embora acabe por utilizar o termo no original, já que seu trabalho não tem a pretensão de propor uma tradução para o termo “nem resolver eventuais questões de gênero” (Dudziak, 2003, p. 24). A tradução do termo information literacy como competência informacional havia sido feita por Campello (2002) na perspectiva da biblioteca escolar, em texto que sinalizava para o potencial desse conceito como catalisador das mudanças do papel da biblioteca em face das exigências da educação no século XXI.

Percebe-se, assim, que os autores brasileiros que trataram da information literacy, embora trabalhando em perspectivas distintas, têm em comum o fato de perceberem a necessidade de ser este o momento de se ampliar a função pedagógica da biblioteca (ou, em outras palavras, construir um novo paradigma educacional para a biblioteca) e de se repensar o papel do bibliotecário. É o momento, segundo Dudziak (2003, p. 34), de buscar “o trabalho cooperativo para o desenvolvimento de novas abordagens relativas à filosofia e às práticas educacionais ligadas à information literacy”.

Nesse sentido, a contribuição que este artigo pretende dar refere-se especificamente à identificação das circunstâncias do surgimento do conceito de “competência informacional” no âmbito da biblioteca escolar. Consideramos que é preciso evitar a utilização irrefletida de um termo que surgiu em circunstâncias históricas peculiares. Devemos ter em mente a necessidade de integrar, em nossas ações, os avanços teóricos e práticos já alcançados nos estudos sobre literacy no Brasil. Assim, no âmbito da educação básica, que constitui o foco de nossos estudos, parece que o conceito de letramento seria o mais adequado para embasar ações que busquem ampliar a ação educativa da biblioteca.

A FUNÇÃO EDUCATIVA DA BIBLIOTECA ESCOLAR

A função educativa da biblioteca torna-se visível com o aparecimento do “serviço de referência” ( reference service) e se amplia com a introdução da “educação de usuários”, conjunto de atividades que, ao contrário do serviço de referência, apresentam uma característica proativa, realizando-se por meio de ações planejadas de uso da biblioteca e de seus recursos.

A educação de usuários como antecedente da competência informacional

Até a década de 1950, a educação de usuários praticamente não existia nas bibliotecas escolares americanas. Estas funcionavam como local de estudo para os alunos, dedicando-se os bibliotecários a realizar apenas o serviço de referência. No início da década de 50, surge o serviço chamado de bibliographic instruction, e, sem dúvida, o termo define com precisão seu objetivo inicial: instruir o leitor no uso da coleção, treinando-o para manusear fontes de informação consideradas apropriadas e relevantes para a aprendizagem de determinado tópico do currículo. Essa fase da educação de usuários caracterizou-se como “abordagem da fonte” (Kuhlthau, 1987, p. 23) ou “foco na coleção” (Stripling, 1996, p. 633).

Em 1960, as diretrizes para bibliotecas escolares da American Association of School Librarians-AASL* mantiveram o foco na coleção, embora recomendando que o ensino do uso dos materiais da biblioteca fosse feito não isoladamente, mas ligado às disciplinas do currículo. Era a chamada “abordagem guia” ((Kuhlthau, 1987, p. 24) ou “foco no programa” (Stripling, 1996, p.634). A biblioteca era então influenciada pelas teorias educacionais que privilegiavam métodos de aprendizagem dinâmicos e centrados no aluno e que tomavam o lugar do ensino verbalista centrado no professor. Essas teorias estimularam a ação dos bibliotecários, que percebiam que a biblioteca tinha contribuição importante a dar no apoio às novas estratégias didáticas.

Nessa época, já existiam no país alguns programas de educação de usuários que enfatizavam habilidades de questionamento e solução de problemas** . Esses novos modelos exigiam um bibliotecário que participasse ativamente do planejamento curricular e que estivesse disposto a abandonar a postura de isolamento, concentrada apenas nas atividades da biblioteca e, ao mesmo tempo, privilegiasse estratégias de aprendizagem condizentes com as teorias educacionais recentes (Stripling, 1996, p. 635). Tudo isso constituiu campo fértil que levou os bibliotecários a desenvolver a preocupação quase obsessiva em provar o valor de sua função educativa e o desejo de contribuir com os ideais pedagógicos da época (Baker, 1979, p. 456).

Em 1975, percebida a necessidade de se ampliar o espaço da biblioteca no processo pedagógico, novos padrões***

* AMERICAN ASSOCIATION OF SCHOOL LIBRARIANS. Standards for school library programs. Chicago: ALA, 1960.

** Um dos mais conhecidos foi o programa desenvolvido por Patrícia Knapp, bibliotecária do Monteith College, que usava uma abordagem de solução de problemas bastante arrojada para a época. KNAPP, P. The Monteith College Library Experiment. New York: Scarecrow, 1966.

*** AMERICAN ASSOCIATION OF SCHOOL LIBRARIANS/ ASSOCIATION FOR EDUCATIONAL COMMUNNICATIONS AND TECHNOLOGY. Media programs: district and school. Chicago: ALA, 1975.

foram lançados, dessa vez recomendando a participação do bibliotecário no planejamento curricular. Havia, na época, entendimento de que as mudanças, especialmente aquelas relacionadas à tecnologia da informação, iriam influenciar fortemente o trabalho do bibliotecário. Tornavam-se freqüentes os questionamentos a respeito da função do bibliotecário e da biblioteca nesse ambiente mutante e com novas perspectivas para a educação. Percebia-se que as bibliotecas, na sua função de repositório de cultura ou local de desenvolvimento da apreciação da leitura literária, embora desempenhassem papéis importantes, não se mostraram capazes de atender a todas as necessidades identificadas como cruciais para a sobrevivência e a realização em um mundo extremamente complexo, abundante em informação e que mudava rapidamente, conforme afirmava Liesener (1985, p.13).

Nessa ocasião o termo information literacy foi usado pela primeira vez. Em 1974, Paul Zurkowsky, então presidente da Information Industries Association* , mencionou-o em relatório submetido à National Commission on Libraries and Information Science, no qual sugeria que o governo norte-americano se preocupasse em garantir que a população do país desenvolvesse competência informacional que lhe permitisse utilizar a variedade de produtos informacionais disponíveis no mercado. Munidas dessas competências, as pessoas poderiam aplicá-las na solução de problemas no seu trabalho – dizia Behrens (1994, p. 310) –, e a indústria da informação teria mercado garantido, a longo prazo, para seus produtos.

Em 1976, o termo competência informacional apareceu em perspectiva diferente. Dois autores (Hamelink citado por Behrens, 1997, p. 310; Owens, 1976, p. 27) usaram o termo vinculando-o à questão da cidadania: segundo eles, cidadãos competentes no uso da informação teriam melhores condições de tomar decisões relativas à sua responsabilidade social. A competência informacional, embora ainda não claramente definida, era vista como solução para questões de extrema complexidade. Passariam ainda vários anos até que o termo fosse assimilado na sua perspectiva biblioteconômica.

* A Information Industries Association, fundada em 1968 nos Estados Unidos, congrega atualmente mais de 550 empresas comerciais, cujo objetivo é criar e distribuir produtos, serviços e sistemas de informação, principalmente em formatos digitais. “Indústria da informação” é a expressão usada para designar o conjunto dessas organizações que fornecem produtos e serviços de informação, utilizando novas tecnologias e agregando valor ao material, permitindo o manejo inovador das informações.

No campo da biblioteconomia, a década de 1980 viu o aparecimento de novas diretrizes (e não mais padrões) da AASL, denominadas Information Power: Guidelines for School Libraries Media Programs*, que procuraram definir com mais clareza a função pedagógica do bibliotecário, advogando a parceria entre professores, dirigentes escolares e bibliotecários no planejamento do programa da biblioteca, de acordo com as necessidades específicas da escola. Uma das funções do bibliotecário seria a de professor, encarregado de ensinar não apenas as habilidades que vinha tradicionalmente ensinando (localizar e recuperar informação), mas também envolvido no desenvolvimento de habilidades de pensar criticamente, ler, ouvir e ver, enfim ensinando a aprender a aprender. Outra função prevista para o bibliotecário era a de consultor didático, encarregado de integrar o programa da biblioteca ao currículo escolar, colaborando no processo de ensino/aprendizagem e assessorando no planejamento e na implantação de atividades curriculares.

Nessa época, a teoria construtivista da aprendizagem já se fazia presente nos estudos biblioteconômicos e influenciou o aparecimento da estratégia didática denominada resource based learning, que surgiu no Canadá e se popularizou nos Estados Unidos na década de 1980. A aprendizagem baseada em recursos, que enfatizava a utilização de uma variedade de fontes e de tecnologias de informação, teve influência marcante nos trabalhos sobre competência informacional e até hoje é citada por autores que tratam do assunto (Loertscher & Wools, 1997, p. 337).

No Reino Unido, era publicado nessa ocasião o trabalho de Michel Marland, Information Skills in the Secondary Curriculum. Foi esse o momento em que se iniciaram as tentativas de se identificar com clareza o elenco de habilidades informacionais que se pretendia que os alunos dominassem** (Loertscher & Wools, 1997, p. 337). Esse trabalho também teve influência no movimento da competência informacional nos Estados Unidos.

* AMERICAN ASSOCIATION OF SCHOOL LIBRARIANS/ ASSOCIATION FOR EDUCATIONAL COMMUNICATIONS AND TECHNOLOGY. Information power: guidelines for school libraries media programs. Chicago: ALA, 1988.

** As competências de informação de Marland são: “O que é que eu preciso fazer? (formulação e análise de necessidades); onde é que eu posso ir? (identificação e avaliação de recursos adequados); onde é que eu consigo a informação? (localização individual de recursos); que recursos devo usar? (exame, seleção e rejeição de recursos); como devo usar os recursos? (interrogação dos recursos); o que devo registrar? (registro e armazenamento de informação); será que tenho a informação de que preciso? (interpretação, análise, síntese, avaliação); como devo fazer a apresentação? (apresentação, comunicação); o que é que eu obtive? (avaliação).” (Alves, 1999, p. 77).

A dificuldade que a classe bibliotecária americana tinha em demonstrar efetivamente sua capacidade de influenciar positivamente a educação veio à tona com a divulgação, em 1983, do documento A Nation at Risk: the Imperative for Educational Reform* , que apresentou um diagnóstico da situação de deterioração em que se encontrava o ensino público nos Estados Unidos. O documento, embora enfatizasse a aprendizagem de habilidades intelectuais superiores, não mencionou as bibliotecas, organizações que tinham “potencial para contribuir para a melhoria significativa demandada pelas escolas e por todas as instituições educacionais da sociedade”, nas palavras de Liesener (1985, p. 11). Demonstrando seu desapontamento com a omissão, os bibliotecários reagiram energicamente, manifestando-se por meio de uma profusão de publicações, em que tentavam explicitar o papel que a biblioteca tinha a desempenhar no esforço de formar a comunidade de aprendizagem proposta em A Nation at Risk.

A reação mais enfática veio na forma de um documento chamado Libraries and the Learning Society: Papers in Response to A Nation at Risk, publicado em 1984 pela ALA, em que os autores demonstravam a contribuição que a biblioteca escolar poderia oferecer para uma educação que ensinasse o aluno a aprender a aprender e desenvolvesse habilidades para buscar e usar informação, consideradas essenciais para viver em uma sociedade complexa e mutável.

Nessa época, já se percebia que a primeira versão do Information Power estava superada. Alguns bibliotecários consideravam que as funções do bibliotecário, conforme definidas no documento, haviam sido pensadas em uma visão da educação tradicional, centrada no professor (no caso, no bibliotecário) e no ensino. As teorias educacionais exigiam que se redesenhassem novas formas de mediação para o bibliotecário, em um modelo em que o usuário ficaria no centro do processo de aprendizagem. Stripling (1996), conhecida especialista em biblioteca escolar, sugeriu os seguintes papéis para o bibliotecário, enfatizando sua função pedagógica:

– Caregiver: essa função relaciona-se com a idéia de que o processo de aprender envolve uma dimensão afetiva; é importante respeitar a individualidade e o interesse pessoal do aluno. Assim, a função do bibliotecário seria a de apoiar a aprendizagem individualizada, auxiliando cada aluno em suas necessidades específicas, respeitando seu estilo de aprendizagem;

* UNITED STATES. National Commission on Excellence in Education. A nation at risk: the imperative for educational reform. Washington, DC: U.S. Government Printing Office,1983.

– Orientador (Coach): a idéia de que o aluno seja responsável pela construção de seu conhecimento coloca o bibliotecário na posição de estimular a aprendizagem, levando o aluno a buscar as fontes, estratégias e respostas para suas necessidades;

– Elo (Connector): as duas funções anteriores seriam de responsabilidade conjunta do professor e do bibliotecário; este último, entretanto, assumiria uma função que normalmente não é assumida pelo primeiro: a de conectar os alunos com as idéias concretizadas no universo dos recursos informacionais disponíveis. E, à medida que esse universo se tornasse cada vez mais complexo, essa função prevaleceria sobre as outras;

– Catalisador (Catalyst): a função coloca o bibliotecário como catalisador das mudanças na escola, tendo em vista a sua posição na estrutura escolar. Como colaborador no planejamento curricular e facilitador da aprendizagem, o bibliotecário estaria em uma posição privilegiada, por ter uma visão global do processo de aprendizagem em todas as áreas (Stripling, 1996, p. 641-649).

As sugestões anteriores já apontavam as mudanças consideradas necessárias na primeira versão do Information Power. A nova versão, publicada em 1998 e rebatizada de Information Power: Building Partnerships for Learning (1998), inovou ao apresentar o bibliotecário como líder na implementação do conceito de competência informacional no ambiente escolar.

A perspectiva da competência informacional

O novo Information Power apresentou um conjunto de recomendações para desenvolver competências informacionais desde a fase de educação infantil até o ensino médio. Nessa versão, as habilidades de informação foram claramente definidas, não só em termos teóricos, mas também na perspectiva de aplicação. Foram incluídas nove habilidades informacionais, divididas em três grupos que abrangem: 1) competência para lidar com informação; 2) informação para aprendizagem independente; 3) informação para responsabilidade social, conforme apresentado no quadro a seguir.

Especificando as habilidades informacionais de maneira detalhada, o Information Power pode ser considerado o documento que concretiza a assimilação do conceito de competência informacional pela classe bibliotecária. Começou, a partir daí, intenso movimento que tornou o conceito um tema de destaque não só nos Estados Unidos, mas também em diversos países, com a criação de entidades, a realização de encontros profissionais, a implantação de programas e o desenvolvimento de pesquisas que levaram a competência informacional a se constituir um dos assuntos mais discutidos atualmente na área de biblioteconomia.

O DISCURSO DA COMPETÊNCIA INFORMACIONAL

A competência informacional foi a bandeira erguida pela classe bibliotecária americana para tirar a biblioteca do estado de desprestígio em que se encontrava. O tom do discurso do movimento é claramente o de exortação e de urgência para as mudanças demandadas pela sociedade da informação. É uma estratégia retórica que se centra na persuasão e que procura levar os praticantes a se convencerem da necessidade de transformação inevitável que virá com as novas exigências da sociedade da informação (Reis, 1999, p. 146). Os bibliotecários são incitados a tomar atitude proativa, a fim de participar do esforço educativo que requer mais do que a visão ingênua e simplista do processo de busca e uso da informação. É necessária uma abordagem realista para o problema; apenas “louvações” sobre as vantagens e os benefícios da biblioteca seriam improdutivas, diz Liesener (1985, p. 12). Essa é também a tônica de uma palestra virtual proferida por Ross Todd (2001), na conferência anual da International Association of School Librarianship-IASL, instituição que abraçou com vigor a causa da competência informacional. Nessa palestra, a classe é conclamada a pautar sua prática no princípio de que a biblioteca atue na perspectiva de “ knowledge space, not information place; connections, not collections; actions, not position; evidence, not advocacy” (Todd, 2001).

É um discurso de dupla face: de um lado, realça a competência tradicional e única do bibliotecário na abordagem crítica da informação, na sua capacidade para lidar com uma variedade de formatos de informação e na sua sensibilidade para entender as necessidades de informação de diferentes categorias de usuários (AASL, 1998, p. 3); de outro, insiste que o bibliotecário deva mudar, adotando atitudes condizentes com o novo ambiente social. A simples disponibilização de materiais na biblioteca, combinada com o nível limitado de auxílio ao usuário, não é considerada suficiente para atender à crescente sofisticação das demandas de aprendizagem sugeridas para a escola na sociedade da informação. Também não são suficientes as concepções “abstratas e ambíguas” que até então embasaram o desenvolvimento dos serviços bibliotecários, afirma Liesener (1985, p. 13). O foco da biblioteca tem de se deslocar dos recursos para o aluno, a fim de criar a comunidade de aprendizagem (AASL, 1998, p. v).


QUADRO 1

O poder da informação: construindo parcerias para aprendizagem




O tom de urgência, de exortação à mudança e de desafio que perpassa o discurso está presente no documento A Position Statement on Effective School Library Programs in Canadá , da Canadian Library Association-CLA, quando afirma que o programa da biblioteca é crucial na educação de crianças e jovens (CLA, 2000). Educar é agora um desafio, diz Kuhlthau, uma das pesquisadoras mais destacadas na área de biblioteca escolar e especialmente no movimento de competência informacional. Ela afirma: “O desafio para a escola da sociedade da informação é educar as crianças para viver e aprender em ambiente rico em informação. Os professores não podem fazer isso sozinhos. O bibliotecário desempenha papel fundamental no enfrentamento desse desafio” (Kuhlthau, 1999, p. 7-8, tradução nossa).

O AMBIENTE DA COMPETÊNCIA INFORMACIONAL

A sociedade da informação

A “sociedade da informação” é o espaço mais abrangente por onde trafega o movimento da competência informacional. É o mundo “alterado pela rápida disponibilização de uma abundância de informação, em uma variedade de formatos” (AASL, 1998). Essa frase sintetiza o discurso dos bibliotecários sobre o contexto que irá justificar a exigência inevitável da competência informacional. É um ambiente tão diferente e mutante que exige novas habilidades para nele se sobreviver. Espaço problemático e interconectado, que vai demandar que as crianças desenvolvam capacidades que lhes permitam aprender a reconhecer e lidar com visões de mundo diferentes das suas, habilidades essenciais para sobrevivência, segundo um dos position paper da AASL, Elementary School Library Media Centers as Essential Components in the Schooling Process (Vandergrift & Hannigan, 1986, p. 172). De fato, “a explosão da informação ... alterou dramaticamente o conhecimento e as habilidades de que [o aluno] precisará para viver produtivamente no século XXI“ (AASL, 1998, p. 2). As mudanças são constantemente lembradas, e o bibliotecário é incitado a aceitar e enfrentar desafios complexos, conforme propõe Ross Todd. “Em um período de profundas mudanças na educação e intenso aumento da acessibilidade da informação, ambos de certa forma impelidos pela tecnologia de redes, o desafio para os bibliotecários, de projetar um futuro superior para os ambientes informacionais da escola é, ao mesmo tempo, complexo e potencialmente desafiador” (Todd, 2001, tradução nossa).

Além disso, a sociedade da informação é ambiente de oportunidades e promessas. Aqui, percebe-se uma retórica utópica que oferece esperança e, mais que isso, fornece um roteiro, instruções precisas, para resolver problemas e atingir a transformação necessária (Day, 1998, p.646). “A competência informacional prepara o indivíduo para tirar vantagem das oportunidades inerentes à sociedade da informação globalizada”, afirma o documento Information Literacy: a Position Paper on Information Problem Solving (AASL, 2001). Constitui espaço que abriga possibilidades para se discutirem questões como a capacidade de o país de competir internacionalmente, bem como as injustiças sociais e econômicas, desde que as pessoas sejam preparadas para lidar com a enorme quantidade de informação disponível, isto é, sejam competentes em informação (ALA, 1989). A sociedade da informação traz grandes promessas para a aprendizagem no contexto das bibliotecas digitais, embora encontrar significados em ambientes de abundância informacional não seja fácil, como reconhece Kuhlthau (1997, p. 722).

A tecnologia da informação

Se a sociedade da informação é ambiente de abundância informacional, a tecnologia é o instrumento que vai permitir lidar com o problema, potencializando o acesso à informação e conectando as pessoas aos produtos da mente, segundo afirma o documento 2020 Vision, que traça as bases da política de informação do Reino Unido (United Kingdom, 1999). Ela é aliada do bibliotecário na “intensificação do acesso à e uso da informação”. Na ideologia da mudança, a tecnologia constitui o instrumento de transformação da sociedade, ou até da própria humanidade. O discurso transformador assume que a mudança que virá liberará o potencial humano e resolverá conflitos de todos os tipos, esquecendo-se de que tecnologias desenvolvidas anteriormente falharam nesse intento (Day, 1998, p.642).

Há também a preocupação constante em mostrar que a fluência em tecnologia é apenas um dos componentes da competência informacional. No documento da Association of College and Research Libraries (ACRL), que define os padrões de competência informacional para o ensino superior, essa fluência é considerada como “estrutura intelectual para compreender, encontrar, avaliar e usar informação – atividades que podem ser realizadas em parte através da fluência em tecnologia, em parte através de métodos de pesquisa sólidos, mas principalmente através de discernimento e raciocínio” (ACRL, 2000). Os bibliotecários são então aconselhados a resistir à sedução da tecnologia, mas, ao mesmo tempo, a compreender seu impacto e a planejar estruturas em que a tecnologia embase a aprendizagem significativa e não a substitua (Oberman, 1996, p. 323). A insistência em mostrar a tecnologia como mero instrumento da competência informacional não impede o aparecimento de inúmeros textos que destacam seu papel no processo de aprendizagem (Bruce & Leander, 1997; Kuhlthau, 1997; Goldfarb, 1999; Gordon, 1999, e muitos outros), sinalizando para a preocupação com a questão que não está resolvida.

As teorias educacionais

A consistência das teorias pedagógicas no discurso da competência informacional vai ocorrendo à medida que o movimento amadurece. É preciso observar que, desde a década de 1950, já havia percepção, por parte dos bibliotecários, de que a biblioteca poderia embasar uma aprendizagem mais ativa, constituindo espaço para desenvolvimento de estratégias de aprendizagem condizentes com as teorias educacionais centradas no aluno. Os documentos institucionais sobre competência informacional mencionam à exaustão as habilidades que consideram essenciais para se sobreviver na sociedade da informação: habilidade de solucionar problemas, de aprender independentemente, de aprender ao longo de toda a vida, de aprender a aprender, de questionamento, de pensamento lógico, colocando-as na categoria de habilidades cognitivas de ordem superior ou de pensamento crítico. Insistem, então, em chamar a atenção para o potencial da biblioteca para o desenvolvimento dessas habilidades, mostrando que isso não irá ocorrer usando-se estratégias didáticas centradas no professor e no livro-texto. Mas as teorias que embasam estratégias adequadas de aprendizagem não eram exploradas em profundidade.

Nos documentos mais recentes já se nota a tendência em tratar as teorias educacionais com maior cuidado. Os autores exploram a literatura educacional e aprofundam os conceitos, para então colocá-los na perspectiva da biblioteconomia (Oberman, 1991; MacAdam, 1995; McGregor, 1999).

O bibliotecário

O bibliotecário é a figura central no discurso da competência informacional. Os autores fazem coro na exortação à transformação pela qual ele precisa passar, se quiser envolver-se no movimento. Longas listas de atribuições são elaboradas para descrever o que o novo bibliotecário, envolvido com a aprendizagem, deve ser e fazer. Os textos relembram a competência tradicional do bibliotecário no uso da informação e da tecnologia e na identificação de necessidades informacionais dos usuários e reafirmam a convicção no seu papel – único e vital – no desenvolvimento da competência informacional, desde que assuma as mudanças e se transforme em membro ativo da comunidade escolar, deixando para trás suas características de passividade e isolamento.

O tema da parceria e da colaboração é recorrente no discurso. No Information Power, a parceria aparece na expressão que designa uma das funções do bibliotecário (instructional partner) que, na versão anterior do documento (1988), aparecia como instructional consultant. Reforça-se, assim, a idéia de que professores e bibliotecários devem trabalhar em colaboração, como iguais (Liesener, 1985, p. 15). O desenvolvimento das habilidades informa-cionais é atividade conjunta de professores e bibliotecários que trabalham em parceria para planejar, implementar e avaliar a aprendizagem (CLA, 2000; AASL, 2001; ACRL, 2000).

A verdade é que essas funções propostas para o bibliotecário no novo ambiente informacional nos Estados Unidos vêm evoluindo ao longo do tempo, desde a publicação das primeiras diretrizes para bibliotecas escolares da American Library Association-ALA em 1945. A novidade refere-se à função de liderança que é posta para o bibliotecário e que, de certa forma, contraria todas as expectativas, levando-se em conta as características negativas que há longo tempo são imputadas a esse profissional (passividade, isolamento, inflexibilidade etc.), aliadas ao problema de identidade que afeta em especial o bibliotecário escolar (Liesener, 1985, p. 18).

A função de liderança foi inicialmente proposta por Stripling em 1996, quando sugeriu que o bibliotecário assumisse a função de “catalisador” das mudanças na escola. No Information Power (AASL, 1998, p. 52) a função de liderança destaca-se como um dos três pilares do processo, e o bibliotecário é exortado a liderar a mudança (a partir da mudança na biblioteca) da própria escola como um todo. É mais uma responsabilidade para o bibliotecário, mas o entusiasmo, a vibração e o dinamismo do discurso embaçam as limitações e os problemas (resistência dos administradores, orçamentos limitados, desinteresse dos professores). Embaçam também o fato de que os bibliotecários se percebem como profissionais que ainda lutam dentro da própria escola com a falta de compreensão de sua função, falta de valorização de seu trabalho, falta de apoio para suas atividades; ao mesmo tempo, estão conscientes de sua imagem negativa e de seu baixo status (Todd, 2001). Tudo isso é posto de lado, pois, ao obter a visão clara dos objetivos de servir à comunidade de aprendizagem, o bibliotecário vai “desfrutar a recompensa sem precedentes” que virá do seu engajamento com a aprendizagem ativa e criativa e voltada para a solução de problemas (AASL, 1998, p. 47).

Aqui o tom exortativo atinge seu ápice e revela com mais nitidez o descolamento da realidade. Realidade que se desnuda, quando se sabe que o “desafio” (no sentido de obstáculo) maior para o profissional que gerencia a biblioteca refere-se à tecnologia. Não a tecnologia como “oportunidade sem limites para a aprendizagem”, mas aquela que sufoca o bibliotecário no seu dia-a-dia, trazendo problemas com equipamentos que precisam estar sempre atualizados e em constante manutenção, equipamentos que drenam os recursos financeiros da biblioteca, que sugam o tempo do bibliotecário, que precisa dominar as novidades, gerenciar o processo, ensinar alunos e professores a utilizar, tudo isso sem apoio especializado, sem pessoal e sem jornada extra de trabalho (Todd, 2001). A tecnologia, nessa situação, é algo pesado que demanda do bibliotecário não competência pedagógica, mas competência gerencial e técnica, que lhe permita atender aos intermináveis pedidos de ajuda para usar os equipamentos e controlar sua utilização (Chelton, 1999, p. 280). Assim, não é de se estranhar que o “desafio” da aprendizagem fique situado em um horizonte distante do bibliotecário, que, enredado nessa teia tecnológica, não consegue escapar da jornada de trabalho pesada, na qual “a situação vai-se complicando e, em certos dias, o caos a que se chega é positivamente assustador” (Todd, 2001).

Então, a tecnologia, em vez de constituir promessa de “aprendizagem rica e criativa”, parece estar transformando o papel educativo do bibliotecário em trabalho não-qualificado e em função técnica de apoio (Chelton, 1999, p. 280). Nessa perspectiva, o discurso da competência informacional revela-se como retórica, e as dificuldades para se obter o tão desejado prestígio para a classe mostram-se em toda sua extensão.

AS CRÍTICAS AO MOVIMENTO DA COMPETÊNCIA INFORMACIONAL

A energia e a fartura das manifestações em prol da competência informacional contrastam com as escassas críticas de seus opositores que tentaram mostrar à classe as fragilidades do empreendimento. Apenas cinco desses autores foram identificados.

As críticas atacam o estardalhaço, o tom de campanha publicitária do movimento (McCrank, 1991, p. 38)* . Em artigo publicado no Library Journal, uma das revistas profissionais de biblioteconomia de maior tiragem nos Estados Unidos, McCrank (1991) critica o tom de exortação dos documentos institucionais do movimento, questionando se ele efetivamente não consistiria em uma campanha para captar recursos para as bibliotecas. É seguido por Foster (1993, p. 344, 346), que ironiza ao dizer que “a literatura de biblioteconomia atualmente reverbera com o zelo missionário da causa da competência informacional”, considerando-a basicamente como exercício de relações públicas.

* O autor se refere à campanha promovida no início da década de 1990 pela Association of College and Research Libraries (ACRL), divisão de bibliotecas universitárias da ALA.

Crítica mais fundamentada ocorreu quando Lori Arp, bibliotecária da University of Colorado, (instituição que esposou com vigor a causa da competência informacional* ), publicou um pequeno artigo na seção Library Literacy da revista RQ da ALA. As ponderações da autora dizem respeito à palavra literacy, que forma a expressão utilizada na língua inglesa ( information literacy). A autora identifica certa imprudência no uso da palavra literacy e chama atenção para a conotação política do termo, sua dependência do contexto em que ocorre e a tendência cada vez maior de sua avaliação e medição em larga escala.

“Se pretendemos abraçar o movimento da information literacy, devemos reconhecer esses aspectos e apoiar o desenvolvimento de amplas pesquisas sobre conceitos e habilidades de busca de informação em diferentes disciplinas. Até lá, devemos ser cuidadosos, ao utilizar o termo dentro da estrutura política em que vivemos, e não ter muita pretensão sobre nossa capacidade de produzir o que não podemos medir ou provar” (Arp, 1990, p. 49, tradução nossa).

A crítica de Arp foi a mais consistente em relação à questão da apropriação do termo literacy, tocada por outros autores apenas superficialmente (Foster, 1993, p. 346; Olsen & Coons, citados por Behrens, 1994, p. 313). Anteriormente, Kuhlthau (1989, citada por Behrens, 1994) já havia mencionado a relação da information literacy com a leitura. Ela perguntava:

“O que significa dominar a leitura na sociedade da informação? A competência informacional está intimamente ligada à capacidade de leitura. Envolve a habilidade de ler e usar informação necessária para a vida cotidiana. Envolve também o reconhecimento da necessidade de informação e sua busca para tomar decisões bem embasadas. A competência informacional requer habilidades de lidar com massas complexas de informação geradas por computador e pela mídia, e aprender ao longo da vida, à medida que mudanças sociais e técnicas demandem novas habilidades e conhecimentos (Kuhlthau, 1989, citada por Behrens, 1994, p. 313, tradução nossa).

Entretanto, a autora não avançou para estabelecer com mais precisão o relacionamento da competência informacional com o domínio da leitura.

* Outra bibliotecária da instituição, à época ocupando o cargo de diretora da biblioteca, Patrícia Senn Breivik, foi autora (juntamente com E. Gordon Gee, presidente da referida universidade) do livro Information Literacy: Revolution in the Library, publicado em 1989, que é extensamente citado na literatura sobre letramento informacional. Breivik é uma das mais destacadas defensoras do movimento.

A percepção da fragilidade do conceito é unânime entre os autores que criticam a information literacy. McCrank (1991, p. 38) denunciava o termo como vago e insípido, ao passo que Foster (1993, p. 344) considerava-o um “termo em busca de um significado”. Snavely & Cooper (1997) retomam e reforçam as críticas à fragilidade do termo ao divulgar opiniões de professores universitários sobre o mesmo*.

Os comentários desses professores refletem a visão de pessoas de fora da área de biblioteconomia: oco, vazio, escorregadio, moeda passageira, coqueluche, sem sentido. Mesmo assim, as autoras analisaram os argumentos a favor e contra o termo e concluíram que ele deve continuar a ser usado, desde que os bibliotecários privilegiem o “melhor significado do termo”. Essa conclusão baseia-se na opinião das autoras de que literacy possua vários significados e um deles se aplica de forma adequada à expressão information literacy. É aquele que o considera enquanto “conhecimento básico de um campo ou assunto, diferente do conhecimento do especialista”. As autoras argumentam que esse significado é cada vez mais difundido e tem sido utilizado para se referir às várias modalidades de literacy hoje possíveis** (Snavely & Cooper, 1997, p. 12). A característica atual de mensuração que o termo denota pode então ser ignorada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se dizer, portanto, que a expressão information literacy nos países avançados é do domínio dos bibliotecários. Embora empregado inicialmente em perspectiva gerencial ou de negócios, o termo capturou a imaginação daqueles profissionais, principalmente dos norte-americanos, que o tem usado como bandeira para levar avante o desejo de aumentar o prestígio da classe, o que seria conseguido com a ampliação da função pedagógica da biblioteca. Desde sua origem, essa função parece ter acompanhado a evolução da profissão. Ao se limitar ao atendimento a questões de referência e ao ensino de fontes de informação, o bibliotecário perdeu espaço no processo pedagógico. Agora, no ímpeto do movimento da competência informacional, pretende ocupar o espaço que considera seu. Tem a seu favor o fato de contar com bagagem de pesquisa acadêmica mais consistente e com evidências mais concretas sobre o impacto da biblioteca

* Essas opiniões foram coletadas pelas autoras em reuniões com professores de duas universidades (Lycoming College e Bucknell University), para a preparação de um workshop a ser realizado durante a Pennsylvania Library Association Conference, em outubro de 1995. (Snavely e Cooper, 1997, p. 9 e 10).

** As autoras listam diversas modalidades de literacy usadas com esse significado: computer literacy, cultural literacy, media literacy, television literacy, visual literacy, etc.

nos resultados escolares. A questão da tecnologia permanece uma faca de dois gumes: embora no discurso da competência informacional ela seja promessa de dias melhores para a profissão, pode, com as contradições que a caracterizam, inviabilizar as pretensões da classe. Entretanto, apesar de calcado em pretensa parceria com os educadores, o conceito continua limitado à literatura de biblioteconomia e ciência da informação. As críticas não foram suficientes para esfriar o entusiasmo do movimento, que se amplia e cativa bibliotecários de outros países (Bundy, 2001) que parecem nele encontrar soluções para seus problemas.

No Brasil, já se percebem claramente manifestações dos bibliotecários sobre a necessidade de ampliar a ação pedagógica da biblioteca. Se para isso formos utilizar o conceito de competência informacional, no que diz respeito à biblioteca escolar, devemos essencialmente levar em conta o panorama dos estudos sobre letramento, que é o conceito utilizado no âmbito do ensino básico para designar “o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler ou escrever”, entendendo-se então que “quem aprende a ler e a escrever e passa a usar a leitura e a escrita, a envolver-se em práticas de leitura e de escrita, torna-se uma pessoa diferente, adquire um outro estado, uma outra condição” (Soares, 2001, p. 17, 36). Assim, a escrita traz conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, lingüísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la (Soares, 2001, p. 17).

Observa-se que, na literatura sobre letramento no Brasil, já há percepção de que existem vários tipos de letramento. Antônio Augusto Gomes Batista, um dos pesquisadores do Ceale/UFMG, que tem como foco de suas pesquisas questões ligadas ao letramento, identifica algumas dimensões desse fenômeno que, segundo ele, estão em fase de constituição. Uma delas diz respeito ao que ele chama de “novos tipos de letramento”, isto é, relativo aos “novos tipos de textos, impressos, linguagens e suportes e seus impactos e repercussões” (Batista, 2000, p. 185). Assim, percebe-se que há espaço para trabalhar a competência informacional no bojo das questões do letramento, o que nos levaria ao letramento informacional. A questão está em aberto; entretanto, é necessário mais do que uma discussão terminológica. O estabelecimento de uma agenda de pesquisa que contemple precisamente os problemas do nosso contexto social e a busca de aportes teóricos da área de educação (especificamente de letramento) poderão abrir caminhos para a desejada ampliação do papel educativo da biblioteca, sem isolar o bibliotecário no espaço da biblioteca.

AGRADECIMENTO

Agradeço à professora Isis Paim pelos comentários e sugestões ao texto.

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sábado, dezembro 10, 2005

Abaixo um artigo de Elaine Serrão.... interessante esta visão histórica da Biblioteca de Alexandria.

BIBLIOTHECA ALEXANDRINA

Bibliotheca Alexandrina

Resumo
A Biblioteca de Alexandria, durante seis séculos, foi o centro cultural do mundo. Reuniu
sábios, das mais diferentes procedências, que nela desenvolveram trabalhos e pesquisas de
importância fundamental para o conhecimento. Bibliotecários eruditos tornaram acessível ao
mundo ocidental obras de toda origem. Calímaco criou uma forma de organização do
conhecimento registrado, cuja influência perpassou outras bibliotecas antigas e bibliotecas
medievais, chegando até nossos dias. A etimologia de palavras utilizadas na Antigüidade
explica seu uso contemporâneo na representação bibliográfica. A destruição da antiga
Biblioteca se reveste de lendas, de origens diversas, inclusive aquelas historicamente
preconceituosas. Conclui-se com um relato sumário sobre a revivescência e as principais
características da nova Bibliotheca Alexandrina, estabelecendo um paralelo entre a antiga
Biblioteca e a nova, como símbolos de conhecimento e coexistência entre diferentes seres
humanos e suas perspectivas.

Palavras-chave
Biblioteca de Alexandria; Catálogo.

THE BIBLIOTHECA ALEXANDRINA
Abstract
The Alexandrian Library has been the cultural center of the world for six centuries. It
congregated scholars, from different origins, that developed works and researches of
fundamental importance for knowledge. The learned librarians made accessible the works
from many sources to the western world. Callimachus created a kind of organization for
registered knowledge, which influenced ancient and medieval libraries, until our days. The
etymology of words used in Antiquity explains their contemporary use in bibliographic
representation. The destruction of the ancient Library is involved by legends of all kinds,
including ones of preconceived historical statements. A brief report about the revival and the
main characteristics of the new Bibliotheca Alexandrina establishes a parallel between the
ancient and the new one, as symbols of knowledge and coexistence between different human
beings and their views.
Keywords
Bibliotheca Alexandrina; Catalogue.

“Oh! senhor, todas as cidades devem ser declaradas abertas, mas parece
que a mente humana não sabe ao certo por que motivo fundou as cidades.
Para bombardeá-las?” (ANDRADE, 196-?)
Este trabalho, reunindo sinteticamente fatos históricos de diversas fontes, deriva-se de uma
apresentação oral, realizada durante a I Jornada Transdisciplinar de Leitura, acontecida na
UNESP/Araraquara-SP, em 2003, como parte das atividades do Grupo de Pesquisa em
História da Leitura, dos Livros e das Bibliotecas.
A apresentação se deu logo após a invasão anglo-americana ao Iraque (a de 2003) e a
inauguração da moderna Biblioteca de Alexandria, ou a revivescência da Biblioteca, em 16
de outubro de 2002; eventos conflitantes, cronologicamente tão próximos: de um lado, a
barbárie; de outro, a tentativa de renascimento simbólico da civilização.

1 POR QUE ALEXANDRIA?
Alexandria, porto de grande importância do Egito, por sua localização estratégica, situa-se
na convergência entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul. Hoje, quer também
significar a convergência entre o passado e o presente da história egípcia.
Figura 1: Alexandria no mapa do Egito Antigo
Fonte: Academia de Ciências Luventicus
Voltando-se no tempo, cerca de 297 a.C., Demétrio de Falera refugiou-se em Alexandria,
junto a Ptolomeu I.


A morte de Alexandre da Macedônia ocasionara a divisão dos reinos conquistados, entre
seus generais. A Ptolomeu I, ou Ptolomeu Sóter, coube o reino do Egito, inaugurando a
dinastia ptolomaica. Aristóteles havia sido preceptor de Alexandre, Demétrio e Teofrasto.
Ptolomeu I convida Teofrasto a ser preceptor de seu filho e esse indica Demétrio em seu
lugar. Assim, Demétrio, obrigado por sua atuação política a fugir de Atenas, achando-se em
completo ostracismo em Tebas, segue para Alexandria. Lá, convence o rei Ptolomeu I a
criar um Mouseion, isto é, Casa das Musas, ou Academia. Segundo Canfora (1996, p. 21),
Demétrio
Levou ao Egito o modelo aristotélico, e esta foi a chave de seu sucesso. Esse
modelo, que havia colocado o Perípato [aristotelismo] na vanguarda da
ciência ocidental, era agora adotado em grande estilo e sob proteção real em
Alexandria.
Parece que Demétrio fez ver a Ptolomeu que este seria um governante mais estável e melhor
se conhecesse os povos por ele governados e se conhecesse as obras sobre o “exercício do
mando” (CANFORA, 1996 p. 22). Enfim, a partir da reunião e leitura de textos dos povos,
sobre os povos e sobre governo, Ptolomeu poderia erigir um reino mais duradouro, o que na
verdade ocorreu, pois sua dinastia permanece, de 323 a.C., até cerca de 30 a.C. A influência
de Demétrio não dura tanto. Novamente afastado do poder, por seu discípulo Ptolomeu II
(Ptolomeu Filadelfo), foi posteriormente assassinado. Mas sua obra ficou na memória dos
antigos e em nossa herança cultural, mesmo que um tanto fantasiada.
Carl Sagan, em seu seriado televisivo “Cosmos”, declarou que, se não se incendiasse a
Biblioteca de Alexandria, os homens teriam chegado à lua no século XV. Exageros à parte,
não há dúvidas sobre a importância daquele centro de pesquisa, para o conhecimento e para
a humanidade de modo geral.
Cabe aqui um parêntese sobre a palavra “Biblioteca”. De origem grega, através do latim,
formada pelos termos “biblion” e “teca” - geralmente traduzidos como “livro” e “depósito”
ou “lugar de guarda” - conduz a um princípio equivocado. A Biblioteconomia, em
conseqüência, seria a coleta, organização e disseminação de livros. Muitos se perguntam se
a mudança de termos acarretaria mudança na imagem da profissão, não a vinculando
necessariamente a livros. No entanto, a palavra grega “biblion” não se poderia referir a
livros, uma vez que eles eram inexistentes para os gregos antigos; havia apenas rolos de
papiro. O papiro, este sim, vinha da cidade fenícia de Biblos (hoje no Líbano), o que
nominou o tipo de suporte em grego. Portanto, qualquer ligação entre o suporte e a profissão
não se dá através da etimologia, mas através da própria imagem que se dá a nossas
bibliotecas.
2 ALGUNS FATOS E INFORMAÇÕES
Existe uma diferença crucial entre fatos, dados, informações e conhecimento. Transmitimos
informações, de interesse ou não ao ouvinte, passíveis ou não de entendimento. Por outro
lado, o conhecer denota, não somente a apreensão, mas o completo discernimento e a
capacidade de transformar o informado em algo significativo, no contexto e dentro das
limitações do ouvinte. Nós, bibliotecários, organizamos, representamos e disseminamos
conhecimento registrado, mesmo que virtual, por meio de informações sintéticas,
representativas do conhecimento. Produzimos conhecimento, apenas dentro de nossa área
específica de atuação. Portanto, aqui, devido a minhas próprias limitações, restrinjo-me à
enumeração de fatos, dados, sem pretender gerar novo conhecimento.
Especialmente durante o reinado dos três primeiros Ptolomeus, Alexandria chega ao ponto
máximo, tornando-se na verdade o centro cultural do mundo. Jacob (2000, p. 47) explica o
interesse da nova dinastia pela criação e conservação de tal biblioteca:
Os ganhos políticos e simbólicos são múltiplos. Nessa terra do Egito
onde, segundo Platão, um deus inventou a escrita quando a civilização
helênica estava na infância, os novos soberanos querem afirmar a
primazia da língua e da cultura gregas, dotar sua capital com uma
memória e raízes artificiais, compensar sua marginalidade geográfica por
uma centralidade simbólica: toda a memória do mundo numa cidade nova,
a oeste do delta do Nilo, uma cidade de imigrados, de colonos, de
militares e de aventureiros, de gregos, de judeus, de núbios e de egípcios.
Estudiosos, sábios, artistas encaminhavam-se para lá, ou lá estudavam. Inúmeros avanços do
conhecimento se deram naquele “centro de excelência”, em gramática, matemática,
astronomia, geometria, mecânica e medicina. Citam-se, entre os grandes nomes que lá
© Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v . 1, n. 2, p.71-91, jan./jun. 2004 – ISSN: 1678-765X.
74
ARTIGO
estiveram e trabalharam: Eratóstenes, Aristarco, Hiparco de Bitínia, Euclides, Apolônio,
Arquimedes, Heron, Herófilo, Erístrato, Hipácia - mulher sábia, astrônoma e matemática,
cujo assassinato em 415 d.C. marca o fim da era científica de Alexandria, na Antigüidade.
Diz-se que o evangelista Lucas (Lucano), antes de sua conversão, morou em Alexandria,
onde estudou medicina.
Figura 2: Euclides
Fonte: Academia de Ciencias Luventicus
Quanto aos números, existem interpretações variadas, uma vez que não há dados exatos e as
fontes divergem. Alega-se que, em seu apogeu, chegou a ter 700.000 rolos, os quais não
correspondem, logicamente, a 700.000 obras, mas a um número bem menor. Segundo
Canfora (1996, p.171), diferentes autores citam entre 400.000 e 90.000; porém, Canfora faz
a distinção entre “rolo” e “obra”, pela origem do termo grego. Assim, Alexandria teria
possuído 400.000 rolos, correspondendo a 90.000 obras. E foram duas as bibliotecas: a
maior, localizada no Museu, e outra, posterior, quando a primeira já não era suficiente,
denominada Serapeum, pois situava-se no templo do deus Serápis, no distrito sul da cidade.
O Serapeum guardava cerca de 40.000 rolos.
As obras se adquiriam de formas variadas. A mais interessante constituía-se na cópia de
todos os livros encontrados nos navios que aportavam em Alexandria: revistava-se o navio,
os livros eram levados à Biblioteca, copiados, e então devolvidos para que o navio partisse.
Quanto às obras sagradas judaicas, Ptolomeu I as fez traduzir por um grupo de setenta e dois
sábios, trazidos de Jerusalém, que levaram setenta e dois dias para concluir seu trabalho
(CANFORA, 1996). Foi a primeira tradução do Antigo Testamento, do hebraico para o grego.
Ptolomeu III mandou cartas aos soberanos do mundo, solicitando-lhes livros, por
empréstimo, para que fossem copiados. O único fato remarcável, neste primeiro
“empréstimo entre bibliotecas”: nem sempre os originais eram devolvidos, mas as cópias...
Supõe-se que houvesse, ao mesmo tempo, cerca de trinta a cinqüenta estudiosos trabalhando
no Museu, o que levou Timão, filósofo cético, a denominá-lo “Gaiola das Musas”
(CANFORA, 1996, p. 39): “Na populosa terra do Egito, são criados uns garatujadores
livrescos que se bicam eternamente na gaiola das Musas”. O que se pode dizer sobre
excentricidades, rivalidades, discordâncias, quando se reúnem dezenas de pessoas, sábias ou
não tão sábias, vivendo em conjunto? Apenas que são humanos e em nada diferem dos
centros acadêmicos da atualidade. Apesar de tudo, a ciência progrediu e progride, e não se
pode exigir que as pessoas se despojem de suas naturezas, de seus problemas, de suas
formações e de suas crenças, “só” porque entram em um recinto de saber. Não nos despimos
de nossas características como trocamos de roupa; não as deixamos em casa quando saímos
à rua. O fator subjetivo mostra-se em todas as pesquisas, em todos os escritos, em todos os
relacionamentos pessoais; a única maneira de minimizá-lo é reconhecê-lo. Portanto, a sátira,
embora hilária, não é mais do que o reconhecimento de que em Alexandria trabalhavam
pessoas, que muito contribuíram para o conhecimento universal. Tais pessoas puderam
estudar, pesquisar e desenvolver o conhecimento, graças à maior característica de
Alexandria: a tolerância, a aceitação dos diferentes. Sábios das mais diversas origens:
raciais, étnicas, pátrias, religiosas, filosóficas, puderam-se reunir e viver em paz, conviver e
crescer. Alexandria se fez grande pela transigência.
3 BIBLIOTECÁRIOS
Na Biblioteca de Alexandria, os bibliotecários-chefes, por seu turno, eram escolhidos pelos
próprios reis. Segundo uma das listas (página oficial da Biblioteca), não absolutamente a
definitiva nem completa, acrescida de informações dadas por Fonseca (1992, p. 104),
chefiaram a Biblioteca: Zenódoto de Éfeso, “notável gramático, responsável pela primeira
edição crítica de Homero e pela Teogonia de Hesíodo”; Apolônio de Rodes; Eratóstenes de
Cirene; Aristófanes de Bizâncio, que “organizou edições de Homero, Hesíodo, Píndaro
Eurípedes, Aristófanes, Anacreonte”; Apolônio; Kidas; e Aristarco de Samotrácia, discípulo
de Aristófanes de Bizâncio, que “com ele colaborou na edição de autores gregos.”
Há controvérsia se o substituto de Zenódoto teria sido Calímaco de Cirene. De qualquer
modo, Calímaco foi seu mais importante bibliotecário e cabe-lhe um lugar particular neste
esboço.
Nascido no norte da África, no início do século III a.C., Calímaco “viveu em Alexandria
durante a maior parte da vida, primeiro ensinando numa escola dos arredores, depois
trabalhando na biblioteca (MANGUEL, 1997, p. 219).” Passou à história como o organizador
do catálogo da Biblioteca, que “sozinho ocupava uns 120 rolos” (CANFORA, 1996, p. 41).
Porém, na verdade, não se tratava de um catálogo tal como o conhecemos hoje.
Cabe observar que, apesar de encararmos a catalogação como representação descritiva, e o
catálogo – seu produto – como algo peculiar às bibliotecas, as palavras em grego possuem
o mesmo sentido da palavra latina, da qual se derivou classificação. Catálogo origina-se do
grego Kata – “de acordo com” ou “subjacente a” – e logos – “lógica” ou “razão” – ou seja,
“algo de acordo com a lógica”, remetendo-nos diretamente ao latim classificare. Ou seja,
catalogar e classificar seriam os mesmos processos, de origens diferentes, o que explica o
catálogo de Calímaco.
Calímaco organizou grande parte do acervo por assunto, talvez se consituindo nos
primórdios da localização relativa, em vez de localização fixa. Não concluiu seu trabalho,
continuado por outros bibliotecários que lhe sucederam. A figura a seguir apresenta rolos
indexados, por meio de etiquetas pendentes, embora não se possa dizer se a figura é real, ou
parte dos mitos e fantasias tão comuns em todo material relativo a Alexandria.

Manguel (1997, p. 219-220) traz-nos observações interessantíssimas sobre tais catálogos,
ligando-os diretamente às práticas biblioteconômicas contemporâneas e permitindo-nos
chegar a inferências singulares.
Primeiramente, tome-se a divisão em assuntos, ou gêneros: teatro, oratória, poesia lírica,
legislação, medicina, história, filosofia e miscelânea. A divisão temática, embora nos pareça
arbitrária (e Manguel o declara), sempre se vinculou a uma visão de mundo, fosse esta uma
corrente filosófica ou uma crença. Calímaco tomou como base a divisão aristotélica do
conhecimento. Os modernos sistemas de classificação bibliográfica, pelos quais
organizamos as bibliotecas, derivam-se da categorização do conhecimento, elaborada por
Bacon (invertida por William Torrey Harris e base para a Classificação Decimal de Dewey,
apud WYNAR, 1980, p. 406-407). A coincidência entre a categoria “miscelânea” de Calímaco
e a classe 0, ou 000, dentros dos sistemas Classificação Decimal Universal e Classificação
Decimal de Dewey - “Generalidades”, também se afigura muito significativa. Se tais
sistemas nos parecem arbitrários - e de fato o são - isto se deve à própria corrente filosófica
à qual se atrelam. Por exemplo, a grande ênfase dada à religião cristã, em especial a
protestante, ou à filosofia ocidental, prende-se à formação dos responsáveis pelos sistemas
contemporâneos.
Em segundo lugar, Calímaco organizou os volumes, dentro dos assuntos, em ordem
alfabética. Desde então, portanto, existia a prática da organização por assuntos e alfabética
por autor, dentro dos assuntos. Em terceiro lugar, utilizou estantes, ou mesas, ou tábuas -
© Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v . 1, n. 2, p.71-91, jan./jun. 2004 – ISSN: 1678-765X.
78
ARTIGO
pinakoi em grego - para a separação temática. Seus catálogos nos ficaram conhecidos como
pinakoi. Porém, o mais remarcável é o nome pelo qual nos chegaram os sistemas,
usualmente denominados “tabelas”.
“Tabela” é palavra de origem latina, tabella, isto é, “pequena tábua”, “quadro de madeira”,
derivada de tabula, “mesa”, “tábua”, “estante”. Assim, do grego pinakoi, passa-se ao latim
tabula e a nossas tabelas de classificação bibliográfica, em descendência direta de Calímaco
e sua forma de organização do conhecimento. Manguel (1997, p. 220-223), entre outros
autores, ressalta a ascendência da Biblioteca de Alexandria, em especial de Calímaco, na
organização de diferentes bibliotecas da Antigüidade e da Idade Média. Singularmente
instigante é o uso de tabulae por Richard de Fournival, no sec. XIII (MANGUEL, 1997),
naquele mesmo sentido, representando o vínculo mais estreito entre Calímaco e nossas
tabelas. Quem diria hoje, em pleno século XXI, ainda sermos influenciados, com todos os
nossos avanços tecnológicos, por Calímaco e a Biblioteca de Alexandria?

4 MITOS E, OU, FATOS SOBRE A DESTRUIÇÃO
Foi nesse mundo que irrompemos, bárbaros, apressados, que não fomos a
destruí-lo, mas a salvá-lo em seu valor mais puro. Se alguma coisa
profanaram nossas botas, é que assim é a guerra: minuto a minuto, uma
impiedosa profanação. (BRAGA, correspondente de guerra, durante a II
Guerra Mundial ([196?]).
A Biblioteca de Alexandria permaneceu como centro cultural do mundo até 48 a.C.
Entramos agora no terreno das especulações, pois as lendas, mesmo que baseadas em fatos
reais, ou parcialmente reais, ou totalmente ilusórios, despertam mais interesse do que a
verdade. Há diferentes teorias sobre a destruição da biblioteca.
A primeira delas trata do incêndio ocasionado, voluntária ou involuntariamente, por Júlio
César. Pode-se declarar que César, por amor a Cleópatra, tomou seu partido, na luta desta
contra seu irmão Ptolomeu XIII, pelo reino do Egito. Pode-se também crer que,
estrategicamente, Alexandria fosse tão valiosa, como porto, como situação geográfica, que
se tornara indispensável conservá-la em mãos confiáveis. Seja qual for o motivo, entram em
guerra, e Ptolomeu XIII e seus exércitos sitiam Júlio César e o palácio ptolomaico por mar.
Para derrotar o cerco, Júlio César manda incendiar os barcos egípcios no porto. Dali, o
incêndio se espalha, tendo queimado dezenas de milhares de livros da Biblioteca, ou a
própria Biblioteca (dependendo da fonte narradora). O incêndio existiu, de fato; os navios
egípcios se queimaram e dezenas de milhares de rolos também. Quanto ao resto da história...
o paciente leitor pode escolher sua versão.
Dificilmente Júlio César, ele próprio um homem culto, permitiria a destruição dos livros.
Maior é a probabilidade de que 40.000 rolos, como descrito por Sêneca (AMAN, 2001), se
encontrassem armazenados no porto, aguardando transporte para Roma, e se tenham
incendiado junto com os navios. Por outro lado, as construções egípcias da época se faziam
em materiais resistentes ao fogo - pedra e tijolos, sem uso de madeira; donde se pode
deduzir que não se queimariam facilmente. Arab (2000) contesta tal afirmativa. Com tantos
documentos contraditórios, nada há que garanta ou negue, de forma definitiva, essa versão.
Sabe-se apenas que a Biblioteca continuou seu percurso histórico de centro cultural do
mundo por muito tempo ainda. Segundo Aman (2001), tempo suficiente para ser “destruída”
também por Augusto, por Aurélio e por Diocleciano, os dois últimos no século III d.C. Já o
historiador Pierre Vidal-Naquet (1989) situa a destruição no século III, durante o reinado de
Aureliano, pelas tropas da rainha Zenóbia, de Palmira (atualmente na Síria).
O segundo incêndio narrado ocorreu em 391 d.C., sendo Teodósio o imperador, Teófilo, o
patriarca de Alexandria, e o cristianismo, a religião oficial do Estado. O zelo de Teófilo em
defesa do cristianismo o teria levado à destruição de todas as obras pagãs, assim como teria
ordenado a morte de Hipácia, em 415. Para alguns, destruiu o Serapeum e a biblioteca
“filha”; enquanto a Biblioteca maior já teria desaparecido. Para outros, o Serapeum
transformou-se em templo cristão. De acordo com o Grupo de Cosmología y Astronomía, da
Academia de Ciencias Luventicus (2002), o historiador Orósio visitou Alexandria em 415 e
confirmou o desaparecimento da Biblioteca no século V. O mesmo Grupo narra a morte
trágica de Hipácia, arrastada por um carro cheio de monges e queimada viva nos restos da
Biblioteca. Nada impossível, mas onde estará a verdade?

O terceiro incêndio, o mais pitoresco, reflete nosso preconceito ocidental. Imputado a Amr
Ibn al-As, conquistador de Alexandria em 642, alude à seguinte história. O guerreiro teria
perguntado a seu califa, Amr Ibn al-Khattab, o que fazer com os livros da Biblioteca,
respondendo este: “Se o que estiver escrito nos livros concordar com a palavra de Deus
[Alá], não são necessários; se discordar, não são desejáveis. Então, os destrua.” (AMAN,
2001). Cânfora (1996, p. 80-93) descreve longamente o episódio, dedicando-lhe um capítulo
inteiro de seu livro. Mas, para a aceitação dessa narrativa, faltam alguns esclarecimentos:
- por que, dos textos produzidos ou guardados em Alexandria, parte nos chegou através dos
árabes, traduzidos em língua árabe?
- como explicar a discrepância entre a narrativa de Orósio, que considera 415 o ano final da
Biblioteca, e a conquista árabe em 642?
- como conciliar o altíssimo desenvolvimento científico e tecnológico dos árabes, àquele
tempo, com uma visão fanática e ignorante?
À guisa de remate, vale lembrar uma historieta contada por Manguel (1997, p. 221):
No século X, por exemplo, o grão-vizir da Pérsia, Abdul Kassen Ismael,
para não se separar de sua coleção de 117 mil volumes quando viajava,
fazia com que fossem carregados por uma caravana de camelos treinados
para andar em ordem alfabética.
Não se trata de postura bibliofóbica, pelo visto... Ademais, a cidade já havia perdido sua
condição de capital do Egito, embora guardasse importância como porto e centro comercial.
A última versão, mais prosaica, recolhida por Aman (2001), levanta uma causa unicamente
econômica. Ptolomeu VI teria cortado o suprimento de papiro à Biblioteca de Pérgamo. O
rei de Pérgamo, assim, buscou um novo tipo de suporte para os registros, aperfeiçoando a
técnica de curtimento do couro (de cabra ou carneiro) e concebendo o pergaminho, muito
mais durável. O novo material possibilitou a criação dos primeiros códices, mais práticos do
que os rolos de papiros. Alexandria não estava em condições de mudar todo seu acervo -
manuscrito - e entrou em declínio.
Edmondson, em documento para a Unesco sobre a salvaguarda da herança documentária
(2002, p. 2), lista como causas de risco a este patrimônio:
- decomposição natural dos materiais, nos quais se registram as obras (caso do papiro,
altamente perecível);
- calamidades naturais, como enchentes e incêndios;
- desastres causados pelo homem, como pilhagens, acidentes ou guerras (aos quais se
poderiam acrescentar as lutas internas, causadas por fanatismo, ignorância, disputas de
poder e de bens);
- deterioração gradual, resultado da ignorância ou negligência humanas na preservação.
A Biblioteca de Alexandria, como nossas modernas bibliotecas, provavelmente sofreu -
mais de algumas e menos de outras - de todas essas causas, até mesmo por sua longa
permanência na história: ao todo, cerca de seis séculos. Deixou-nos uma herança indelével,
um exemplo a ser seguido, de busca do conhecimento e tolerância. Certamente o homem
moderno tem muito a aprender das lições de Alexandria. Por isso, o grande esforço da
Unesco, juntamente com o governo egípcio, durante mais de uma década, para o
reflorescimento daquele centro cultural e de pesquisa.
5 A NOVA BIBLIOTHECA ALEXANDRINA
A partir de 1986 iniciaram-se os estudos para a nova Biblioteca, em esforço internacional
conjunto, encabeçados pela Unesco e pelo governo egípcio.
ARTIGO
“Em 26 de junho de 1988 o presidente do Egito, Hosni Mubarak, assentou a pedra
fundamental para a Bibliotheca Alexandrina, em área de cerca de 32.500 m2, adjacente ao
campus principal da Universidade de Alexandria [...]”, um mirante sobre o mar (AMAN,
2001.
Em setembro do mesmo ano, a Unesco e a União Internacional de Arquitetos, com
financiamento do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, estabeleceram um
concurso internacional de arquitetura, para o projeto da nova Biblioteca. Dos mil trezentos e
vinte e quatro pedidos de participação, por arquitetos de setenta e quatro países,
concorreram quinhentos e vinte e quatro projetos, de cinqüenta e oito países. Venceram o
concurso, em primeiro lugar: Snohetta Arkitektur Landskap, Oslo, Noruega (projeto
executado). Em segundo lugar: grupo Manfredi Nicoletti, Roma, Itália. Em terceiro lugar:
José Eduardo Ferolla e equipe, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
Figura 5: Bibliotheca Alexandrina, vista do cais
Fonte: www.unesco.org
Grunberg (1998) e Tocatlian (2003) descrevem as críticas e o ceticismo internacionais,
envolvendo as diferentes etapas da construção. De início, intelectuais e jornalistas egípcios
se opuseram ao projeto, questionando “a necessidade de tal biblioteca, levantando objeções
relativas a seu custo, seu projeto e sua finalidade” (TOCATLIAN, 2003.). Grunberg (1998)

analisa o ceticismo internacional, em se tratando de projeto de tal envergadura. Apesar de
todas as objeções e dificuldades, graças a suportes financeiro e intelectual internacionais,
aos esforços dos responsáveis pelo projeto, na Unesco e no governo egípcio, hoje a
Biblioteca lá está. Grunberg (2003), adequadamente, diz não se tratar de um renascimento,
posto que a atual Biblioteca em nada se assemelha à antiga, mas de uma revivescência, um
renouveau. No local do palácio dos Ptolomeus e da antiga Biblioteca, cria-se o novo, o
moderno, uma Biblioteca ao mesmo tempo pública e de pesquisa.
O conceito do projeto se constitui em um círculo, representando o sol, tão importante na
mitologia egípcia e, ao mesmo tempo, o símbolo do que ilumina e aquece o mundo e os
homens. A construção é circundada por um muro, em forma de meia-lua, com inscrições de
letras em alfabetos de cento e vinte idiomas.
Figura 7: Maquete do projeto
Fonte: www.unesco.org
Figura 6: (Inscrições em diferentes alfabetos)
Fonte: www.unesco.org
O texto de Serageldin (2001), diretor-geral da Biblioteca, traz seu programa, citando as
palavras da esposa de Mubarak:

- será a janela do mundo para o Egito;
- será a janela do Egito para o mundo mediterrâneo e para o mundo em geral;
- florescerá com o desafio das novas oportunidades tecnológicas do novo milênio e a aurora da era
digital; e por último, porém não menos importante,
- será o centro pujante de estudo e debate e o eixo do diálogo intercultural e intercivilizacional.
Abdelhady (2003) aponta como objetivo maior: “Honrar o passado, Celebrar o presente e
Inventar o futuro.”
Do ponto de vista organizacional, a Bibliotheca Alexandrina é uma entidade autônoma,
vinculada diretamente ao Presidente da República do Egito (TOCATLIAN, op. cit.).
Gerenciam-na: um Conselho de Patronos (presidido pelo Presidente do Egito e do qual
fazem parte, entre outros membros, o Diretor-Geral da Unesco, o Presidente da França e a
Rainha da Espanha), um Conselho de Curadores e um Diretor-Geral.
O complexo cultural é formado por três elementos: um centro de conferências, que já
existia, o novo Planetário e a nova Biblioteca, todos subterraneamente interligados.
Compreende:
- a Biblioteca, com cerca de 69.000m2, em onze andares, e que consiste de:
Biblioteca Principal, Biblioteca de Multimeios, Biblioteca “Taha Hussein” para
deficientes visuais, Biblioteca Juvenil e Biblioteca Infantil; ainda abarca as
seguintes salas de Leitura: de Microfilmes, de Manuscritos, de Obras Raras. Prevê
um acervo de até oito milhões de volumes (no momento, há cerca de 400.000).
© Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v . 1, n. 2, p.71-91, jan./jun. 2004 – ISSN: 1678-765X.
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ARTIGO
Figura 8: Salões de leitura - Foto de Mohamed Nafee
Fonte: http://www.bibalex.org
- Museus: o próprio Planetário, abaixo do qual se encontra o Museu de História das
Ciências, e o Museu de Manuscritos. Ainda se prevêem: o Museu de Antigüidades
e o Museu de Ciência Exploratória, destinado ao público infanto-juvenil;
Figura 9: Planetário e Museu de Ciências - Foto de Mohamed Nafee
Fonte: http://www.bibalex.org
- Galerias Permanentes e de Exposições Itinerantes. Já se acham em funcionamento:
a Galeria de Impressões de Alexandria e a Galeria “O Mundo de Shadi Abdel
Salam”, artista e cineasta egípcio.
- outros organismos: Escola Internacional de Estudos em Informação, Instituto de
Caligrafia, Laboratório de Restauração de Manuscritos e cinco institutos de
pesquisa;

- Centro de Conferências, com 3.200 lugares.
Muito interessante a organização do acervo, por andares, simbolizando uma pirâmide do
conhecimento, a partir da Classificação Decimal de Dewey:
Figura 10: Organização do acervo nos andares
Fonte: Abdelhady (2003)
Novamente, devemos aprender, com Alexandria, uma forma diferente de visualizar o
conhecimento.
“Egito, a mais antiga civilização permanecente na Terra, é fonte de contínua
inspiração e interesse para o mundo” (SERAGELDIN, 2001).
Por sua importância estratégica, o Egito sofreu várias invasões e foi objeto de inúmeras
disputas, até sua independência completa, ocorrida somente no século XX (cf. The History
of Alexandria across the ages). Perdeu tesouros históricos para museus de todo o mundo,
mas conseguiu preservar sua cultura e muitos de seus monumentos, em meio à diversidade
que o caracteriza.
Porta, ou janela, como diz seu programa, entre o Oriente e o Ocidente, entre os hemisférios
norte e sul, ao reflorescer sua Biblioteca, quer também reviver seu espírito, unindo passado e
futuro. Pretende tornar-se um locus de pesquisa, de preservação do saber e de diálogo. Não
há lugar nem momento mais adequados.
Quando se tenta, novamente, a imposição de um pensamento hegemônico, de modelos
únicos, de visão singular do mundo, seja pela força da barbárie, seja pela força econômica,
seja pelos mecanismos sutis da indústria cultural, a Bibliotheca Alexandrina deve propiciar,
tanto ao Ocidente como ao Oriente, a oportunidade de conhecer mais um ao outro,
compreendendo-se mutuamente. A compreensão é a primeira etapa da aceitação e da paz.
Para Adorno (1995, p. 184) “paz é um estado de diferenciação sem dominação, no qual o
diferente é compartido”.
A Bibliotheca Alexandrina, por tudo isso, torna-se o moderno símbolo da coexistência, da
união de esforços e da paz.

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Eliane Serrão Alves Mey
Mestre em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de Brasília, Doutora em Ciências da
Comunicação pela Universidade de São Paulo, professora do Departamento de Ciência da Informação,
Universidade Federal de São Carlos.
e-mail: elimey@terra.com.br
Agradecimentos: Mais uma vez, agradeço a contribuição desinteressada e profissional de minha amiga
Marília Ludgero Motta da Silva, grande revisora, desta vez com o auxílio inestimável de Sidney Barbosa,
professor de Letras da UNESP/Araraquara e coordenador de nosso Grupo de Pesquisa. Ambos foram
incansáveis na busca em tornar este artigo mais agradável à leitura. Chloë Ariadne Furnival auxiliou na versão
do resumo para o inglês.
Artigo aceito para publicação em: 01/11/2003
© Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v . 1, n. 2, p.71-91, jan./jun. 2004 – ISSN: 1678-765X.