domingo, agosto 20, 2006

Barbara Epstein, a alma da NYT Review of Books Como a criadora e diretora da publicação, que morreu no mês passado, fez de cada edição uma leitura obrigatória

Martin Kettle, The Guardian

Você já saiba que existem cerca de 300 milhões contêineres de expedição em todo o globo, que no século 20 revolucionaram o comércio mundial, permitindo aos países em desenvolvimento, em especial a China, enviar mercadorias com mais rapidez, de forma mais barata e lucrativa, e tornando possível a manufatura moderna na qual os componentes são feitos num continente e montados em outro? Ainda mais que a internet, os contêineres são as artérias da globalização moderna. Mas eles se transformaram em dor de cabeça para a segurança. Seria difícil detectar contêineres adaptados e equipados para transportar pessoas entre os milhões deles repletos de mercadorias genuínas. O potencial de morticínio decorrente da explosão de um contêiner-bomba seria bem maior que de um avião comercial lotado.
Agora, uma segunda questão e um tópico diferente: você sabia que durante a revolução americana do século 18, entre 80 mil e 100 mil escravos afro-americanos (quase um quinto da população escrava da América do Norte) fugiu? Bem, eu também não sabia disso. Mas os escravos não fugiram para qualquer lugar. Uma parcela passou para o lado dos britânicos, que lutavam para impedir a independência americana, na esperança de obter liberdade e proteção. No fim da guerra, entre 15 e 20 mil escravos fugidos continuaram sob proteção britânica. Muitos permaneceram nos EUA e se aventuraram. E, apesar de o próprio George Washington ter exigido o retorno deles, cerca de 9 mil preferiram seguir os últimos ingleses quando estes se retiraram da terra que se tornou os Estados Unidos.
A deles foi uma das mais pungentes das diásporas humanas. Alguns desses ex-escravos foram para Nova Escócia. Outros atravessaram o Oceano Atlântico para a Europa. Alguns continuaram na Grã-Bretanha, outros participaram de projetos de colonização no oeste da África, principalmente em Serra Leoa, às vezes em associação com escravos libertos que haviam permanecido nos EUA. E, em 1787, em 11 casos individuais notáveis, fizeram parte da "primeira frota" de condenados pela justiça e colonos que viajaram de navio para o que é hoje o porto de Sydney para criar a moderna Austrália. Assim, não é impossível que ao menos 1 desses 11 tenha nascido na África, crescido nos EUA, ido já adulto para a Europa e terminado seus dias na Austrália - uma história de vida de viajante global que seria notável mesmo no século 21, quanto mais no século 18.
A esta altura, você talvez esteja se fazendo uma terceira pergunta: aonde tudo isso pretende nos levar? Os dois assuntos têm em comum o interesse inerente e o estímulo intelectual. E ambos são brilhantemente discutidos na mais recente edição da publicação que, ao menos na opinião deste leitor geral, mais pode reivindicar para si o título da publicação indispensável do moderno mundo falante do inglês - a New York Times Review of Books.
Há cerca de um ano, um amigo atento insinuou que, em muitas ocasiões, esta coluna conteve uma recomendação para ler este ou aquele artigo num exemplar recente da NYRB. Desde então, tenho tentado refrear este hábito, nem sempre com sucesso. Mas minha devoção a este maravilhoso exame quinzenal da política e das artes não diminuiu, e a morte no mês passado da sua fundadora e diretora, Barbara Epstein, é uma oportunidade de explicar por quê.
Para fazer isso, não é preciso ir muito longe, pois na atual edição de 10 de agosto, amigos e colegas lembram Epstein e o cuidado dela com a edição. Em um artigo, Gore Vidal recorda como Epstein contestou o uso casual do adjetivo "implacável" aplicado a Bobby Kennedy (imagine tentar manter tal tato e escrúpulo na imprensa britânica de hoje movida a insultos). Em uma outra participação, o historiador de Yale, Edmund S. Morgan, capta um aspecto essencial da NYRB, que qualquer leitor assíduo reconhecerá instantaneamente. O método de Epstein de encomendar matérias era muito peculiar, revela Morgan: "Nada de solicitar um determinado número de palavras em uma determinada data marcada sobre o livro a ser enviado se eu concordasse com as condições. Nada disso. Um livro chegava à sua porta com uma mensagem de uma só sentença - 'se este livro lhe interessar'. A pressuposição era que eu talvez quisesse escrever algo sobre o livro para ela. Sem data de entrega, sem especificar o tamanho, sem precisar entregar o livro se este não me interessasse. Fui desarmado pelo alto estilo desse modo de se dirigir a mim... Era um convite para ser você mesmo, para mostrar o que você tinha a dar."
Com essas maneiras irresistíveis, Epstein e seu co-editor, Robert Silvers, criaram a publicação de leitura obrigatória com 68 páginas que está diante de mim na minha mesa. Embora este último exemplar não contenha nada do meu habitual favorito da NYRB, o grande Garry Wills, ainda consegue - com suas avaliações magistrais das exposições de Dada e Frederic Church (a última de autoria de nada mais nada menos que John Updike), da vida de Stravinski ("Quando Stravinski morreu (...) o mundo ficou sem um grande compositor pela primeira vez em 600 anos. E ainda está.) e sua análise da política moderna iraquiana, o islamismo xiita, da nova Bolívia e do significado de a decisão da Suprema Corte sobre Guantánamo - proporcionar uma demonstração do jornalismo superior que dá uma surra nas futilidades de seus imitadores britânicos.
Você, às vezes, pode ter a impressão que o liberalismo americano da era Bush caiu em descrédito e fracassou, ainda mais tomando como exemplo a seletividade da imprensa britânica. Continuem sonhando, vocês esquerdistas hipócritas e neoconservadores raivosos, com suas certezas superficiais. Enquanto a incomparável New York Review of Books de Barbara Epstein existir e estiver bem, ela é capaz de convencê-lo uma vez a cada 15 dias que ainda existe algo na nossa vida intelectual que vale a pena ser passado adiante.
TRADUÇÃO DE MARIA DE LOURDES BOTELHO

Nenhum comentário: