domingo, junho 11, 2006

Artigo de Mario Vargas LLosa

Filosofia doméstica para tornar a vida mais compreensível e tolerável

Fillósofos, teorias e sistemas são a paixão de casal belga, para o qual jamais falta tempo para ler
Como todos os hotéis da cidade estavam cheios, a Universidade Livre de Bruxelas me alojou na casa particular de um casal belga, Danielle e Michel Wajs-Waks, e devo a esta circunstância uma das experiências mais estimulantes que já tive: ter visto de perto, e quase ouvido e tocado, a maneira como a cultura em geral, e a filosofia em particular, podem enriquecer e embelezar a vida das pessoas comuns.Embora chamar Danielle e Michel de "comuns" seja bastante inexato, pois, com seu amor às artes, às letras e, sobretudo, às idéias, ambos são pessoas bastante incomuns no ambiente em que transitam. Eu os chamo assim porque nenhum dos dois se dedica profissionalmente ao que se entregam em todas suas horas livres, um tempo que arranjaram para as preservar, como algo precioso e indispensável em existências enormemente atarefadas em atividades que estão muito longe do que se costuma chamar de meio intelectual. Mas direi, contudo, que em poucos amigos intelectuais, e conheço muitos, percebi um entusiasmo tão genuíno e um aproveitamento prático tão feliz do que estamos acostumados a chamar cultura.Tudo que cerca esse casal parece impregnado de reminiscências filosóficas, literárias ou artísticas, a começar pela casa onde vivem, uma construção insólita num bairro residencial bruxelense de edifícios oitocentistas ou do início do século 20, inspirada na moradia que Ludwig Wittgenstein projetou para sua irmã em Viena. A ampla, luminosa residência, de tetos altos e quartos retangulares, rodeada por um jardim cheio de patos, tem esculturas e pinturas modernas, e, por toda parte, livros e revistas entre os quais prevalecem os dedicados à filosofia: a clássica e a modera, a francesa, a alemã, a grega, a inglesa, e uma grande variedade de dicionários e manuais especializados sobre sistemas, teorias ou filósofos. Folheei alguns deles e verifiquei que estavam anotados com uma profusão de comentários à margem, sempre a lápis. A filosofia é a paixão de Michel Wajs, que nunca freqüentou um curso de filosofia na vida, pois sua formação universitária foi em economia. Tampouco deu aulas, embora tenha assistido a conferências e seminários, sempre como ouvinte e, estou certo, tratando de passar despercebido. Ninguém que o ouvir falar, com aquela voz suave e um tanto tímida, relacionando constantemente a circunstância do momento com certas afirmações, críticas ou teses vindas de algum filósofo ou ensaísta e apoiando-se nestas para explicar ou entender melhor aquilo de que se fala, imaginaria que a vida de Michel Wajs transcorreu muito longe das aulas, das academias e das universidades.Porque Michel Wajs é um homem de negócios e, a julgar pelas aparências, muito bem-sucedido. Herdou uma pequena empresa de seu pai, dedicada a projetar e produzir materiais de escritório, e agora que beira os 60 anos, a empresa cresceu e se multiplicou graças a seu empenho e visão de acrescentar a seu catálogo uma grande variedade de produtos, desde objetos de viagem e decoração até mobiliário, e seus clientes se espalham por todo o mundo, sobretudo a Ásia, o que o leva a tomar aviões com freqüência. Como consegue ler o tanto que leu e lê? Seu caso comprova a grande mentira dos que lamentam a falta de tempo para ler todos os livros que gostariam pelas obrigações que os sobrecarregam; Michel e Danielle - que é médica e trabalha num hospital fazendo pesquisas de bioquímica e diagnósticos - dedicam muitas horas do dia a afazeres que os mantêm afastados de sua bela biblioteca e, contudo, leram e lêem com avidez e muito, muitíssimo, porque desde muito jovens descobriram que os bons livros são, além do melhor entretenimento, uma fonte incomparável de prazer, um alimento com o qual a vida cotidiana, mesmo em suas manifestações mais vulgares e rotineiras, pode ser melhor e vivida com mais plenitude e lucidez.INTUIÇÃOEssa paixão pela leitura que ambos compartilham não os tornou pedantes ou livrescos. Detesto esses exibicionistas que andam pelo mundo alardeando o que acabam de ler e estrangulando a conversa com suas citações impertinentes. Não é o caso dos Wajs. Ambos são discretos, muito pouco propensos a falar de si mesmos - de fato, tive que arrancar aos poucos de Michel de que modo ele ganhava a vida - e as alusões aos livros vêm a seus lábios com absoluta naturalidade, geralmente com alegria, porque isto que estamos vendo, ou comentando, ou recordando, não é extraordinariamente claro tendo em conta aquilo que, por exemplo, dizia Martin Buber sobre a condição humana ou Emmanuel Levinas ao falar da moral? Na época moderna, a especialização foi empurrando a filosofia com muita freqüência a se expressar numa linguagem cifrada que a coloca fora do alcance dos não profissionais, e com isso a imensa maioria das pessoas, aquelas que, como Danielle e Michel Wajs, fazem parte do comum, dá as costas completamente a um afazer que lhes parece artificioso e abstrato, sem maior contato com seus problemas cotidianos, isto é, uma tarefa intelectual obscurantista e pouco prática.O extraordinário no caso de Michel e Danielle é que, guiados pela intuição e o instinto de bons leitores e seu amor às idéias, eles conseguiram ir desentranhando nesse intrincado bosque onde tantos se aborrecem e se extraviam, os tesouros escondidos sob a mata e o barro, e recuperar no pensamento filosófico o que foi sua razão de ser, o que fez que surgisse: explicar a vida e ajudar a viver.Disse que não eram livrescos e o que queria dizer é que esse intenso convívio visceral que ambos têm com os livros não os privou de se interessar pelas outras coisas boas e entusiasmantes que a vida propõe.Vão pouco ao cinema e vêem apenas televisão, certo, mas a arte os deleita, e passear com eles por Bruxelas, naquele dia ensolarado, foi formidável não só pela beleza dos canais e das velhas residências apertadas em suas margens onde a Idade Média ainda parece pairar, mas porque, com seus comentários e informações, os Breughel, os Van Dyck, os Memling, os Rubens, os retábulos flamengos primitivos pareciam remoçar e se propor, serviçais e esplêndidos, como um antídoto ao pessimismo, à frustração, à desmoralização, como uma contundente demonstração de que, apesar de tudo, é evidente que vale a pena viver a vida. Mas também vi os Wajs entusiasmados como crianças enquanto me mostravam, nesse "país plano" do qual Jacques Brel cantava que as únicas montanhas eram as torres de suas catedrais, antiquíssimas pousadas com alambiques e tonéis de cerveja tão espessa que parecia sólida, ou quando me contavam anedotas ou aspectos do trabalho de dois pintores que admiro e que eles conhecem a dedo - Ensor e Delvaux -, ou quando nos embrenhávamos numa discussão estupenda sobre Israel e Palestina.Por que me impressionou tanto esse casal com o qual o acaso me fez compartilhar alguns dias em Bruxelas? Não creio que tenha sido apenas pelo tanto que eles se mostraram amáveis e hospitaleiros com o hóspede que a Universidade Livre lhes impingiu. Foi principalmente porque, convivendo com eles, comprovei de imediato como aquelas coisas que se diz porque é preciso dizê-las, porque sem dúvida são certas, mas nas quais ninguém se detém nunca a refletir, em seu caso o eram de fato, de uma maneira que saltava aos olhos e o provava a cada instante: que a cultura, a literatura, as artes, a filosofia, desanimalizam os seres humanos, ampliam extraordinariamente seu horizonte vital, atiçam sua curiosidade, sua sensibilidade, sua fantasia, seus apetites, seus sonhos, os tornam mais porosos à amizade e ao diálogo, e melhor preparados para enfrentar a infelicidade. E a comprovação era ainda mais completa porque nem Michel nem Danielle pareciam estar sequer conscientes disso: a vida fora se organizando de tal modo para eles, por acaso de afinidades e gostos compartilhados, que num mundo em que a cultura adquire cada vez mais a aparência de um afazer à parte, de um monopólio de clérigos vaidosos e pouco compreensíveis, eles foram desenvolvendo ao criar, ao pensar, ao escrever, sua vocação primitiva: a de tornar a vida mais compreensível e tolerável.FANATISMOPor que não há mais pessoas como Danielle e Michel no mundo? Se houvesse, estou certo de que haveria menos guerras, menos fanatismo, menos violência, menos estupidez. Será culpa da má educação reinante em quase todas as partes do mundo o fato de que a cultura seja um luxo prescindível para um número cada vez maior de pessoas? Talvez seja o contrário: que por a cultura ser um reduto de minorias é que a educação está como está. Mas a educação não pode suprir por si só o que anda mal nas famílias, nos meios, nos costumes e nos usos de uma sociedade.Talvez uma parte da culpa caiba também aos homens e mulheres de cultura que andam nas nuvens, e olhando, como os olham, das alturas, os incultos, com infinito desinteresse, sem fazer o menor esforço para chegar até eles e seduzi-los. Na verdade, não tenho uma resposta que me convença. Mas sei que não é verdade que uma vida cultural rica seja impossível, por razões práticas, neste mundo frenético e ocupado que é o da maioria dos mortais. Se não me acreditam, vão a Bruxelas, vão e imitem Michel e Danielle Wajs.
TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIKMas sei que não é verdade que uma vida cultural rica sejaimpossível nestemundo frenéticoe ocupado--Por que não há mais pessoas como Danielle e Michel? Se houvesse, estou certo de quehaveria menos guerra, fanatismo, estupidez--


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