sábado, maio 06, 2006

Livros que a gente devora, literalmente

Edible Books Festival, nos EUA, um banquete de textos comestíveis, traz novo cardápio na festa que este ano reúne 16 países e 28 Estados americanos

Sérgio Augusto

Abrir um livro e cheirá-lo é a segunda melhor coisa que podemos fazer com ele. Há quem discorde. Os bibliófagos, por exemplo. Para eles, a melhor coisa que podemos fazer com um livro é devorá-lo. Devorá-lo lato sensu; comê-lo de verdade. Só acha que isso é hábito de cupim e rato, excentricidade de criança e cachorro quem nunca ouviu falar no Edible Books Festival, banquete anual de livros comestíveis com sete anos de relevantes serviços prestados à bibliogastronomia.
Celebrado em bibliotecas, livrarias, galerias, sítios da internet e privadamente, o festival foi idéia de uma livreira, Judith A. Hoffberg, que, como não podia deixar de ser, vive na Califórnia. Deu-lhe o estalo na ceia do último Dia de Ação de Graças do século passado, quando a conversa da mesa derivou para as metáforas gástricas usualmente utilizadas por quem adora ler: "devorei-o de uma sentada"; "achei-o indigesto"; "saboreei cada palavra", etc.
"E se fizéssemos livros em forma de bolos, tortas, panquecas, sanduíches, e depois os comêssemos?", propôs Hoffberg, sem imaginar que seus amigos levariam a proposta a sério. Invertendo, porém, sua formulação: bolos, tortas, panquecas, sanduíches e outros farináceos em forma de livro, que foi o que ela quis dizer.
Ao primeiro festival, realizado em 1º de abril de 2000, vieram acepipes de sete estados norte-americanos e também da França e Austrália. No 1º de abril de 2001, já havia 10 países prestigiando o Edible Books Fest, entre os quais o Brasil, que, representado por duas mineiras de Belo Horizonte (Lucia e Luciana: www.book2eatBrazil.cjb.net), desde então nunca faltou ao evento. Para o deste ano inscreveram-se 16 países e 28 estados norte-americanos.
Nada a ver com o universal "dia dos trouxas" e sim com o natalício de um sujeito que entendia como ninguém dos prazeres da boa mesa. Também foi num 1º de abril que nasceu o gastrônomo francês Jean Anthelme Brillat-Savarin, autor do fundamental A Fisiologia do Gosto, publicado em 1825 e traduzido 170 anos depois pela Companhia das Letras. A ele o festival é dedicado; homenagem justíssima - e mais coerente do que se tivessem escolhido como patrono a figura de Johannes Gutenberg, inclusive porque não se sabe em que dia este nasceu.
Cozidos, assados, fritos ou simplesmente esculpidos, os edíveis tomos do festival são feitos à base de fatias de pão de forma, tortilhas, alga marinha, queijo, frios sortidos e até rutabagas (uma espécie de nabo) fatiadas bem fininhas. Das 14h às 16h, os circunstantes apreciam os "livros" expostos, soltam seus "oohs!" "aahs!", "hum!", "nhame-nhame", e tiram fotografias. Às 16h, um chá é servido. A bibliodegustação vai começar.
Principais atrações do menu deste ano: o Shell Book (com biscoito waffle e creme), o Book of Pi (quase um calzone retangular com os 13 primeiros algarismos da mais conhecida dízima periódica gravados na "capa"), o Water Edges (um missal de farinha de trigo aberto sobre um suporte achocolatado). Em 2005, Carolyn Weigel, uma bibliófaga da Pensilvânia concorreu (sim, há prêmios) com um arranjo de fatias de bacon no formato do mapa da França. Era um tributo ao filósofo Francis Bacon. Tudo bem, seu sobrenome evoca toicinho defumado e foi mesmo ele quem disse que "determinados livros são para ser testados, outros mastigados e uns poucos saboreados e digeridos", mas Bacon não era francês, era britânico.
Esse é o lado bom, inofensivo e prazeroso da bibliofagia. O indigesto ficou circunscrito às Sagradas Escrituras (o profeta Ezequiel e o apóstolo João foram induzidos a deglutir papiros com ensinamentos divinos e achar aquilo "doce como mel") e à história antiga de certos povos - se bem que até hoje os tibetanos tratam a epilepsia com mantras manuscritos ou impressos em papel despejados goela abaixo.
Quando dizia que alimentava sua alma com as "nutritivas verduras" colhidas, antes de dormir, no Novo Testamento, a rainha Elizabeth I estava cometendo uma metáfora. Já o monarca etíope Menelik II devorava trechos das Sagradas Escrituras por via oral, mesmo. Com intenções meramente terapêuticas. Ao menor sinal de doença, ingeria páginas e páginas do Velho Testamento, que, desprovidas de atributos homeopáticos, não conseguiram salvá-lo de uma indigestão, sem hipérbole, bíblica. Oficialmente, Menelik morreu de enfarte, em 1913, mas, segundo consta, a verdadeira causa mortis foi o Livro dos Reis, que, como se sabe, são dois.
Houve um tempo, na Europa, em que as pessoas comiam livros, não por fé ou superstição, mas de castigo. Ou melhor, eram forçadas a comer livros, nem sempre previamente cozidos, para escapar de infortúnios piores, como a pena de morte. O auge da bibliofagia coercitiva foi nos séculos XVI e XVII, quando os poderosos do dia costumavam obrigar quem os criticara a engolir suas palavras literalmente, in natura. O jurista alemão Philip Oldenburger teve de mandar para o estômago um panfleto que produzira contra um príncipe, provação reproduzida pelo cineasta Peter Greenaway numa passagem de O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante.
Com uma taxa vergonhosamente elevada de analfabetos funcionais e um consumo ridículo de livros (o brasileiro médio não chega a ler dois por ano), é provável que só consigamos fazer bonito confeccionando e devorando romances, ensaios e enciclopédias em forma de guloseimas. Mas não será por aí, infelizmente, que o Fome Zero deixará de ser uma utopia, sobretudo se até o livro comestível custar, por aqui, em torno de 10% do salário mínimo. Incluí-lo na cesta básica, nem pensar: guloseimas, em geral, têm pouco ou quase nenhum valor nutritivo; só engordam e aumentam as taxas de colesterol, triglicerídeos e glicose.
A terceira melhor coisa que podemos fazer com um livro-livro mesmo, à base de celulose, impresso e com lombada, é torná-lo acessível, mediante empréstimos e doações a bibliotecas públicas. Outros, mais ousados, acreditam que eles, se rejeitados, podem virar uma obra de arte. "Livro não se joga fora", vivia advertindo o professor e artista plástico britânico John Latham, que desde os anos 1960 usava-os como matéria-prima de quadros, esculturas e instalações, ora por inteiro, ora pintados, cortados e queimados.
Há 40 anos, Latham convidou seus alunos para um happening intitulado Still and Chew (Natureza morta e mastigação), que consistia na mastigação das páginas mais estimulantes de Arte e Cultura, do seminal crítico modernista Clement Greenberg. A gororoba resultante era cuspida num frasco e misturada a uma solução de ácido sulfúrico, bicarbonato de sódio e fermento. Batizada de "Grapa de Greenberg", provocou a demissão de Latham, mas foi parar no acervo do MoMa de Nova York.
Sem solução para o excedente de livros não retirados por seus sócios, a Biblioteca Pública de Portland (Maine) juntou-se ao Maine College of Art para salvá-los do lixo, transfigurando-os em objetos artísticos. Doug Beube, artista biblioplástico do Brooklyn (Nova York), atuou como mestre de cerimônias do projeto, complementando sua palestra com um estímulo à "recriação do livro" pelos quase 200 artistas presentes no auditório. "Peguem o que quiserem daquela pilha e botem a imaginação para funcionar", exortou Beube. A pilha evaporou-se em menos de cinco minutos.
Um pulseira de tirinhas de texto presas a um elástico foi o que Megan Dunn criou. Susan Winn pegou um exemplar de Leaves of Grass (Folhas da Relva) e transformou-o em "Fields of Greens": um pequeno vaso retangular em forma de livro de onde brotam finas lâminas de papel imitando relva extraídas das páginas de Walt Whitman. Brandy Bushey arrancou o miolo de um livro intitulado Feeding the Brain (Alimentando o cérebro) e o encheu de bombons de pasta de amendoim da marca Reese. Bushey, que à obra deu o nome de "Candy Dish" (Prato de doce), juntou a metáfora com a vontade de comer, a bibliogastronomia com a biblioarte, Brillat-Savarin com Duchamp.
Essas e outras quase 200 reciclagens de livros foram parar nas bibliotecas públicas de Dallas e do Alasca. Detalhe: quem pega o "livro" de Bushey pode comer todos os bombons, mas é obrigado a devolvê-lo devidamente reabastecido de Reese's peanut butter cups. Já pensei em rechear com Bis o miolo de O Doce Veneno do Escorpião, para torná-lo palatável. E que tal umas ovas de salmão no livro de memórias do Fernando Henrique Cardoso?

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