domingo, abril 02, 2006

O Globo Rio, 01 de abril de 2006


Três razões para enfrentar o poder do Google

Rachel Bertol

Jean-Noël Jeanneney é o presidente da Biblioteca Nacional da França (BnF) e um dos principais convidados do colóquio “Bibliotecas Digitais”, segunda e terça-feira no Teatro da Maison de France. Também lança no Brasil “Quando o Google desafia a Europa” (Contracapa), no qual analisa as questões em jogo desde que a empresa anunciou, no fim de 2004, a intenção de digitalizar o maior número possível de livros. Nesta entrevista, dá três motivos para se enfrentar o novo poderio: o Google, diz, não tem critérios claros para a busca de livros; baseia-se sobretudo na obtenção de lucros, o que não é o caso de instituições públicas; e privilegia um olhar anglo-saxônico do mundo. Abaixo, suas opiniões sobre a nova era digital.
Acredita que as bibliotecas digitais podem ser um bom caminho para um país como o Brasil, que sofre com a falta de bibliotecas tradicionais? Talvez, com a proposta de venda de computadores populares, essa possibilidade se torne mais viável...
JEAN-NOËL JEANNENEY: O mundo digital oferece incontestavelmente possibilidades de acesso a bens culturais muito bons e inéditos. No entanto, exige a existência de uma infra-estrutura (rede elétrica, computadores) que faltam muitas vezes em países menos desenvolvidos. A queda rápida dos custos, os esforços realizados em escala mundial para reduzir a exclusão digital nos fazem esperar uma difusão rápida das novas tecnologias de informação, aptas a favorecer uma real democratização para o acesso ao conhecimento, ao saber, à cultura.
Será necessário repensar os antigos direitos de autor, baseados apenas no copyright?
JEANNENEY: A nova realidade digital não modifica o princípio fundamental do direito de autor, direito moral do autor sobre sua obra, nem a possibilidade de ele obter uma remuneração que lhe permita viver. Porém, supõe certamente uma adaptação, para que este equilíbrio, essencial à vitalidade da criação, não se rompa. O aparecimento de toda nova mídia — a imprensa escrita no século XIX, o cinema no início do século XX, rádio e televisão em seguida — levanta inevitavelmente a questão da remuneração dos detentores de direitos e, a cada ocasião, é preciso encontrar novas respostas.
Na música, as mudanças ocorreram de forma mais radical. As editoras deveriam se preparar para um “novo mundo”?
JEANNENEY: As dificuldades, relativas, que enfrenta a indústria do disco merecem de fato suscitar a reflexão no mundo da edição, mas também no da livraria, o qual já conheceu grande evolução, com a criação das grandes redes e o nascimento de sites de comércio online. O desafio consiste em adaptar essas profissões à nova realidade tecnológica; não se trata de pensar no seu desaparecimento! O papel do editor continua indispensável para a descoberta, a produção e a difusão do livro.
As possibilidades digitais já mudaram a realidade de uma instituição como a Biblioteca Nacional da França?
JEANNENEY: Desde o início do projeto de modernização da antiga e respeitável Biblioteca Nacional da Rua Richelieu, cuja origem remonta ao século XV, a dimensão digital estava presente. Hoje, Gallica, nossa biblioteca online, com 80 mil títulos disponíveis e outro tanto de imagens, pode ser acessada gratuitamente de todo o mundo a partir do nosso site (www.bnf.fr): recebemos todos os meses mais de um milhão de visitantes, curiosos com a cultura francesa. Mais documentos são consultados em um mês na Gallica do que em um ano nas salas de leitura da Biblioteca. É uma evolução que surpreende os espíritos. A BnF lançou inúmeros canteiros de trabalho na área digital. Um dos mais importantes é a digitalização dos principais títulos da imprensa, insubstituíveis ferramentas de trabalho do pesquisador, mina inesgotável de riqueza para o historiador, o sociólogo, o economista, e para o grande público curioso. Outra iniciativa promissora é a extensão do depósito legal a todos os sites da internet: trata-se de conservar para as gerações futuras os rastros desse novo patrimônio. A BnF também se envolveu com paixão no projeto de biblioteca digital européia.
Qual é a vantagem de se criar uma biblioteca digital européia?
JEANNENEY: O objetivo é pôr à disposição de um grande público a cultura européia, na sua variedade lingüística e ideológica: sua história tormentosa, seus debates filosóficos e religiosos, os avanços nos domínios das ciências e das técnicas, as tendências de pensamento em matéria de direito, sociologia, economia, as principais expressões da criação literária e artística do continente... A imprensa também é um eixo interessante: imagine que se possa consultar, num único clique, todos os jornais europeus de 2 de dezembro de 1805, dia da batalha de Austerlitz, a 11 de novembro de 1918, data do armistício que pôs fim à Primeira Guerra!
O Google ambiciona reunir todos os livros do mundo no seu mega-site. Não seria mais uma boa fonte de consulta?
JEANNENEY: Quando o Google anunciou o seu projeto, eu logo considerei que se tratava de um avanço considerável no desenvolvimento da cultura mundial. À condição, porém, de não se deixar a uma sociedade comercial americana o monopólio dessa iniciativa. Vejo três razões para isso. De um lado, o Google propõe um acesso no vácuo a todos os saberes; ora, uma verdadeira biblioteca digital deve oferecer um acesso que tenha um percurso organizado em torno de conjuntos coerentes de obras escolhidas. De outro lado, o Google é uma sociedade cujo motor é o lucro, o que me parece, aliás, totalmente legítimo. Mas as bibliotecas nacionais e, mais que isso, o poder público sustentam a continuidade a longo prazo dos interesses coletivos do patrimônio cultural. Enfim, o Google é uma sociedade americana que vai privilegiar necessariamente um olhar anglo-saxônico do mundo. Nós, europeus, queremos privilegiar a diversidade das trocas culturais, defender a “exceção cultural” em nível mundial e promover o multilingüismo.
Podemos falar numa guerra internacional para o controle do maior número possível dos documentos disponíveis?
JEANNENEY: Existe pelo menos uma confrontação de natureza econômica entre várias grandes sociedades (Google, Microsoft, Yahoo...) para as quais o mercado de informação, com os lucros publicitários que proporciona, tornou-se muito rentável! Soma-se a esta competição, profundamente natural nas nossas economias, uma diferença entre os interesses privados, de um lado, e o interesse geral, encarnado pelo Estado cujo papel é superar as variações conjunturais dos mercados para garantir a perenidade, a longo prazo, do patrimônio cultural.
E as tecnologias do livro digital, acredita que irão evoluir?
JEANNENEY: O e-book, caracterizado pela leitura de textos na tela, ainda não convenceu. Mas a nova tecnologia da “tinta eletrônica”, cujo custo ainda é alto, parece promissora.
O livro digital pode acabar com o tradicional?
JEANNENEY: Continuo convencido de que, apesar das evoluções impressionantes da tecnologia, o livro em papel se manterá um vetor indispensável na transmissão do saber. Cada meio de difusão da leitura apresenta trunfos e fraquezas: preço módico para o livro em papel (na Europa) e grande capacidade de difusão instantânea para o livro digital. Não me parecem concorrentes, mas muito complementares. Uma parte importante do público que freqüenta nossas salas de leitura consulta, igualmente, à distância, a biblioteca eletrônica.
Como imagina o futuro das bibliotecas com o advento dos meios digitais? Podemos falar na biblioteca infinita, borgiana?
JEANNENEY: Pode-se sonhar, como Borges, com a biblioteca infinita com a totalidade do saber no mundo! Mais modestamente, os meios digitais oferecem uma oportunidade formidável para a difusão do conhecimento e de progresso do espírito humano. As bibliotecas “reais” não vão desaparecer: os encontros que proporcionam continuam indispensáveis, sobretudo aos jovens. Nas nossas salas abertas, há leitores mergulhados em livros que coexistem harmoniosamente com internautas. A profissão de bibliotecário está sendo chamada a se transformar: vai se tornar mais rica e apaixonante.
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