domingo, março 05, 2006

O apocalipse do papel e os universos paralelos do livro

O apocalipse do papel e os universos paralelos do livro

Onde for, no lugar-pensamento que chegamos. Se chegar lá, Lá existe. Só existe o que vemos. Ler no espelho algo invertido. Deus não soube encontrar. Só encontra nisto. Isto, isto mesmo. Assim é a vida, nela mesma. As coisas no que são. Sozinhas, começam a partilhar de outra natureza."Extraído da plaquete "Isto", de André Luiz Pinto MANUEL DA COSTA PINTO COLUNISTA DA FOLHA (FSP 25-02-2006)
Em 1998, durante um encontro de revistas ibero-americanas organizado em São Paulo pelo poeta Horácio Costa, o escritor mexicano Christopher Dominguez, da "Vuelta", ironizou a idéia de que haveria um "apocalipse do papel" -ou seja, que o avanço tecnológico apontava para o fim iminente do livro.Passados oito anos, a invasão da vida privada pela internet e a proliferação de espaços virtuais como blogs e Orkut dariam mais munição para os arautos da morte da palavra, da pauperização da linguagem verbal. Entretanto, a tecnologia gráfica vem realçando um aspecto nada negligenciável da experiência da leitura: o prazer proporcionado pelo contato físico com o livro."Os livros são objetos transcendentes/ mas podemos amá-los do amor táctil", escreveu Caetano Veloso na canção "Livros". E, numa crônica recente, publicada na Folha, Nelson Ascher falou sobre "os universos paralelos (no sentido que lhes dá a ficção científica) da tipografia, impressão e artes correlatas".Em suma, a mesma tecnologia que permite ler uma obra em ambiente virtual pode amplificar o efeito das artes gráficas tradicionais, transformando o "suporte" da palavra num artefato estético quase autônomo. Exemplo bem concreto é a onda de plaquetes que vêm circulando de modo crescente entre leitores e escritores unidos exclusivamente pelo culto fetichista do livro."Plaquete" é um galicismo que designa um livrinho de poucas páginas (às vezes uma espécie de folder) impresso de forma artesanal e com apuro visual. Tradicionalmente, foi veículo para que escritores divulgassem seus textos numa época em que publicar livros era uma operação dispendiosa.Muitos nomes consagrados da literatura brasileira passaram por essa experiência e não seria exagero dizer que tal suporte está na raiz da "geração mimeógrafo", que nos anos 70 buscou meios alternativos para imprimir seus trabalhos à margem da censura militar e da cultura oficial.As plaquetes atuais apontam em outro sentido. Seus autores têm livros publicados -ou seja, não são excluídos de um sistema no qual há cada vez mais espaço para pequenas editoras. Também não sustentam atitude missionária ou vanguardista. Sua opção, mais modesta, é estética.Caso exemplar é o poeta Ronald Polito, que criou o selo Espectro Editorial, publicando versos do italiano Umberto Saba (1883-1957), do espanhol Adolfo Montejo Navas ("Esse Animal de Água") e, mais recentemente, o poema em prosa "Isto", de André Luiz Pinto. Seu trabalho gráfico é primoroso e inclui um envelope (selo Edições do Outro Mundo) contendo dez folhetos com narrativas de autores catalães.Um problema comum a todas as plaquetes é que o acesso a suas minúsculas tiragens (na casa dos cem exemplares) é limitado. Em geral, são distribuídas gratuitamente para um círculo restrito. Muitos editores, porém, estão dispostos a enviar exemplares aos interessados, praticamente sem custo (ou apenas o do correio).É o que acontece com as plaquetes do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, do Ceará (literatura@dragaodomar.org.br), que publicou o poema "Ninguém", de Virna Teixeira (sobre ilustração de Leonilson), e o poema a quatro mãos "Outra Manhã", de Manoel Ricardo de Lima e Aníbal Cristobo (sobre instalação de Eduardo Frota).A plaquete "Tributo a Guernica", inaugurando o selo Piparote (piparote@gmail.com), traz variações de Franklin Valverde sobre a tela de Picasso, num sofisticado volume em capa dura. Já a série "Relógio do Rosário", elaborada por Júlio de Abreu e Silva e Ricardo Novais, distribuída pela editora Scriptum (scriptum@scriptum.com.br), é composta por 12 encartes com desenhos de artistas como Marco Tulio Resende e Ananda Sette para textos de poetas como Júlio Castañon Guimarães, Carlos Ávila, Fabiano Calixto e Tarso de Melo compostos a partir do poema homônimo de Drummond.Um caso à parte é o "Zinequanon", misto de fanzine e plaquete do poeta Reynaldo Damazio (
www.weblivros.com.br), que tem sido um canal precioso para originais e traduções de autores praticamente inéditos no Brasil, como o argentino Roberto Juarroz e os anglófonos Richard Brautigan e Charles Simic.

Manuel da Costa Pinto

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